PRECAVEU-SE DAS ARRANHADAS
À noite, com chuva e fria, ao caminhar solitária nada faz mais medo que encontrar um cão preto babando.
Ela voltava do trabalho, era secretária sênior em escritório de advocacia. O patrão, homem exigente, mas que já se acostumara com seu modo de ser, pediu-lhe que ficasse até mais tarde, tinham prazo a cumprir, ainda elaborava a defesa, precisava de retaguarda, não se sentia muito bem.
A leal funcionária, quando convocada, agradecia. Ela sonhava com promoção, pois logo também seria uma advogada. Não recusou a obrigação e trabalhou até às duas da madrugada.
Voltou pra casa de táxi, pediu que parasse na esquina da rua que morava, pagou, desceu. Caminharia 80 metros até a porta de casa, madrugada sem viva alma, não gostava que taxistas ´parassem em frente da sua casa, também, evitaria que soubessem exatamente aonde morava, precaução apenas.
Caminhava já a pensar no compromisso de encontrar com o namorado, imaginou no que vestiria, lembrou-se que teria que ir ao banco, antes, checaria a agenda dos advogados do escritório, a retaguarda precisa de funcionamento perfeito. Coisas simples, mas tantas que sem lógica bagunça tudo. Felizmente, tinha talento pra este trabalho.
De repente, ouviu o rosnado forte, assustador, sinistro. Dez metros adiante de si um imenso cachorro gordo, preto, quase um bezerro. Seus dentes grandes estalavam, as suas patas raspavam o asfalto que faiscava. Amedrontador.
Fixou seus olhos no cão, este farejou, pareceu não gostar do que via, deu um pulo pra trás e disparou ao seu encontro.
Sempre otimista, mesmo prestes a uma tragédia, imaginou-se numa praia deserta com seu namorado todo de branco correndo ao seu encontro, agarrando-a para rodopiarem com a brisa batendo nos seus corpos, o som poético das ondas aprofundando a paixão, os pés molhados e gelados pela água do mar a fazer tremer ainda mais seus corpos.
Mas a realidade era outra. Supôs-se arranhada, nas pernas que sagrariam, a dor pelas mordidas do cão em seu rosto. Previu que o animal a derrubaria e mais sofrimento. Ainda bem que conhecia aquele trajeto e mesmo na escuridão sabia onde se encontrava. Escolheria o local para tombar, isto a machucaria menos, temia que alguma vértebra se quebrasse. Precisava se proteger, também, da pancada que levará na na cabeça ao batê-la no meio-fio. Isto sim seria o pior.
O cão disparou, ela nem teria tempo de chorar, aguardou seu salto, o cão saltou.
Lambeu-a no rosto, era evidente que ele adorava a dona. Tudo bem para ela, se seu fiel amigo sempre faz isto, então, prepara-se à recepção. Melhor assim do que chegar até a porta da sua casa de táxi e depois ter que pagar os estragos pelas arranhadas do Golias na pintura dos carros.