Anos atrás um amigo me pediu para acompanhá-lo numa encrenca junto à incorporadora. Ele comprara um apartamento e quase na entrega das chaves apertou-se, atrasou três prestações e cancelaram o contrato, mas não o comunicaram. Ele retomou o pagamento, inclusive depositou com atraso os três meses atrasado, a incorporadora recebia, parecia-lhe tudo bem.
O prédio foi entregue, ele não recebeu o aviso e nem os comunicados sobre o que lhes devia na parcela das chaves e nem lhe pediram a documentação ao financiamento.
Foi à luta para resolver o caso, começou por visitar o prédio e soube que a sua unidade já tinha morador.
Ligou-me, pediu ajuda, fui junto.
O presidente da incorporadora nos recebeu depois de alguma insistência - um senhor calmo, cabeça branca, voz forte, imperativa. Pede à secretária a ficha dele. Mostra que meu amigo faltara com três prestações, contrato cancelado, venderam para outro o apartamento. Meu amigo mostrou os recibos de que efetuara os pagamentos com atraso e somente faltava os pagamentos finais.
O incorporador ligou ao financeiro que confirmou que recebera as quantias e que estava disponível a devolução - representavam 28% do total da compra. Explicou que mandou inúmeros avisos e não obtivera resposta.
Aí eu entrei na conversa, disse-lhe que aquilo era um absurdo, que estava nítida a intenção de permanecerem com os numerários até que meu "cliente" reclamasse os pagamentos.
O incorporador, impassível, recostou-se na cadeira, por vezes olhava ao infinito, esperou o término do meu esbravejar e latir, ao lado meu amigo quieto deixava que eu falasse.
- O senhor tem razão - diz o incorporador - que falha do meu financeiro. Nossos controles não "se falam". Tenho mais de três mil unidades em cobrança, outras mil em construção. Este fato demonstra que a evolução deve ser constante.
- Sim, e daí? - eu questiono.
- daí...daí... deixa-me pensar - e deu uma pausa para folhear as páginas envelhecidas da pasta do meu amigo.
- O senhor tem café e água? - eu peço para clarear a sua desorganização - na entrada vi a secretária servindo outras pessoas.
- Maaaarrriiiaa....traz café e água. Três de cada. E água gelada e café quente, não vá se enganar - ele disse, muito bem humorado.
E continuou a leitura até o fim de solvermos o café.
- Meu caro, o apartamento que comprou, perdeu, mas você confiou em mim e me pagou. Não quero que perca o dinheiro.Temos duas alternativas: a justiça ou a compra de outra unidade que lhe darei um bom desconto.
E a conversa enveredou para nova unidade que meu amigo comprou na planta, recebeu dois anos depois, pagou tudo direitinho, aprendeu a lição, também.
Depois daquela reunião não participei dos passos o seguintes. Passados mais de um recebo um convite para almoçar, era aniversário. E quem era o aniversariante? O incorporador.
Putz..fiquei sem jeito, quase retorno da porta, mas ele me viu, veio com a mão esticada, disse que era bem recebido e, pasmem, não me reconheceu.
Ao final do almoço formou-se uma rodinha e começo a falar sobre o mercado de capitais, minha única tara daqueles tempos. Entro no meu HB e opero alguns daytrades, por sorte, todos bem sucedidos. O cara me achou o máximo!!
- Amanhã vá no meu escritório, quero conhecer mais sobre isto....
Não fui, no dia seguinte perdi um bom dinheiro, fiquei tonto, até que fui lá.
- Meu caro, diz, eu conheço muito de daytrades, já ganhei, mas já perdi muito mais. Não serve isto. É besteira e lhe provo.
E me deu uma aula sobre "scalpers". Depois, outra sobre investimentos de longo prazo, mercado imobiliário, etc... E nada de relembrar daquele nosso primeiro encontro.
Mais alguns meses eu o convidei para vir comigo até Jericoacoara e ficamos por uma semana juntos, ele me aconselhando a me mudar para cá.
- Você é este lugar de sonhos. "The man in the place" - disse-me.
Desta nossa viagem até os dias de hoje se passaram 3 anos.
Em 2014 optei por trabalhar numa empresa de Brasília, foi bom.
E talvez nestes 1000 dias nós nos falamos 900, principalmente, depois do whatz.
Há dois meses ele fez 70 anos, comemorou 7 dias, cada festa 70 amigos. Fomos a uma delas.
Dia seguinte eu o presenteei com uma lanterna - não sei porque escolhi isto - e somente, então, perguntei-lhe:
- Você lembra que estive aqui pra brigar com você sobre o apartamento que meu amigo comprou, pagou, você vendeu pra outro porque sei que fazia overbooking, lembra-se?
- Over o que? Tá doido, é? kkkkk - riu às gargalhadas - Claro que lembrava de você, mas você nunca tocou no assunto, e se a pedra rolou pra fora do nosso caminho nós seguimos em frente.
- Só uma coisa me intriga. Os seus controles são muito bons - eu digo - naquele dia você disse que eles não se falavam e por isto que recebeu o dinheiro e não devolveu.
- Foi a minha saída - riu de novo - mas o que importa é que seu amigo fez um tremendo negócio, não é? Comprou uma bela unidade que mesmo nesta crise vendi tudo. Eu pensei, se ele me pagava é porque queria o apartamento, certeza que tive quando ele levou você pra berrar por ele.
Escutei isto. Era a pura verdade, meu amigo queria o apartamento e se vangloria até hoje de ficar com outro bem melhor que a unidade original.
Ontem, domingo, 9 de abril, em Las Vegas, realizaram uma cerimônia de entrega de premiação de uma franqueadora que o incorporador é um dos franqueados. São mais de 300 no país. Recebi uma foto dele no palco dum hotel daqueles gigantes. Ficou em décimo lugar no Brasil. Sob a foto, a legenda: "ano que vem passo esse pessoal". Ele comprou a franquia há dois anos, os outros estão há muito mais tempo.
Este é o meu conselheiro imobiliário, um bruxo em vendas. Estou bem.