Eu sempre gostei de escrever, escrevia bastante quando era moleque, mas sei l´å porque acabei parando com isso na época do colegial.
Ultimamente, muito instigado pela filosofia do fórum (vai lá e faz, melhor feito do que perfeito), andei sentando pra escrever um pouco. Saiu esse conto que posto a baixo. Meio viajado, mas foi divertido escrever. Não sei muito bem o que fazer com ele (afinal é só um conto e não tem como publica-lo). Então segue aí pelo menos pra galera do fórum que quiser perder um tempinho.
CORAÇÃO VENENOSO
Eram 16:30 de um dia que havia começado ensolarado e bonito e agora caminhava para um nublado sem graça e com ares de chuva. Eu balançava os joelhos impacientemente e olhava para o copo de uísque em minha frente, considerando com cautela se o tomava ou não. Nunca fora um sujeito de vícios (que isso fique bem claro aqui), mas no momento em que me encontrava precisava desesperadamente de algo que me acalmasse, e diabos, eu estava num bar! Também poderia tentar um cigarro, mas só a ideia de mandar toda aquela fumaça para meus pulmões me deixava nauseado. Não, ficaria com a bebida, muito obrigado (afinal o senhor fígado não ficaria tão mal assim por fazer hora extra um único dia, ficaria?). Não, talvez não o senhor fígado, mas você precisará da senhora cabeça no lugar meu chapa. Ignorando aquela voz em minha cabeça, dei o primeiro gole, devagar. A bebida desceu, queimou, depois subiu e queimou de novo. Resmunguei algo que nem eu mesmo entendi e pensei que se virasse de uma só vez talvez ficasse mais fácil. O uísque desceu novamente, indiferente à minha garganta desacostumada, caprichando principalmente na parte do subir e queimar, mas ei, realmente havia sido mais fácil. Agora eu contemplava o fundo vazio do copo, que parecia forçar a senhora cabeça a se lembrar daqueles últimos 20 dias que haviam me levado até ali.
Tudo acontecera de repente, evoluiu da pior maneira possível e não havia nada que eu pudesse fazer. Deixe eu te contar sobre o último dia em que tudo estava bem. Acontece que eu tenho um filho sabe, de 5 anos, nesse dia quando eu chego do trabalho ele ainda está acordado, sorridente como sempre, brincando com seus bonecos da Guerra nas Estrelas, ainda um pouco gripado, mas feliz da vida por que eu cheguei mais cedo e me chamando impacientemente para que me junte a ele. Antes de ir até ele eu paro na porta da cozinha e o encaro um pouco, viro e olho também para minha esposa preparando o jantar, com o cabelo preso e uma única mecha lhe caindo ao lado do rosto, da mesma maneira que estava quando a conheci. Ela também sorri pra mim. Penso que a vida é perfeita.
Em momentos assim você sente que é impossível ser mais feliz, mas às vezes, se você se descuidar, você também sente medo, medo de perder tudo. E às vezes, a vida perfeita te passa a perna. Sem mais sorrisos e brincadeiras, levaram seu filho, e você não entende quem, como ou por que. Sua mulher se desespera, diabos, você também se desespera, mas é ela quem vai para o hospital. Nessas horas você agradece por seu amigo de infância ter resolvido ser médico e estar cuidando de tudo. Mas quanto ao seu filho, bem, quando a ele sentem muito, mas não há nada que possam fazer.
Isso aconteceu há 20 dias. Tentei manter a coisa escondida, mas, como sempre a imprensa, descobriu. Começaram a me perturbar em casa, e à minha esposa no hospital. Há 15 dias saiu no jornal e há 10 recebi o telefonema. Minha chance de ter meu filho de volta. Em troca, é claro, dinheiro e nada de barulho.
De volta ao bar, sou puxado para fora daquela retrospectiva bizarra pelo garçom me servindo mais uma dose:
? Com os cumprimentos do cavalheiro daquela mesa.
Levanto a cabeça, olho pra trás e lá está ele. Olho em volta do bar que está praticamente vazio, não é um lugar movimentado a essa hora do dia. Acho que o homem sabia disso. Há um casal em um reservado à esquerda, ele uns 50 anos, ela uns 30, ele olhando envolta, como eu, ela despreocupada. Acho que eu não sou o único com segredos essa tarde. Na ponta do balcão à minha direita, um homem senta cabisbaixo e pede sua terceira ou quarta dose de uísque. Esse sim profissional. Fora isso, apenas eu e ele.
Pego a maleta em meus pés e me dirijo até o reservado em que ele está. Ao me aproximar posso avaliá-lo melhor. Deve ter uns 45 anos, cabelos começando a ficar grisalhos e o rosto já com algumas rugas. Nem gordo, nem magro. Usa um terno escuro com risca de giz, uma camisa clara com uma gravata vermelha. Me faz lembrar daquele assassino careca dos jogos de vídeo game. Se a situação fosse outra eu estaria rindo com certeza. Sua expressão é fria e também condiz com a de um matador. Tem a postura de um negociante implacável que já fez isso inúmeras vezes e sempre ganhou.
Me sento em sua frente sem dizer nada, ponho novamente a maleta em meus pés e a empurro por baixo da mesa.
— Está tudo aqui?
— Claro que está. Confira logo.
— Acho que vou acreditar no senhor.
— E porque deveria?
— Talvez porque o senhor tem um semblante desesperado. Me diz que ama o seu filho o suficiente para não arriscar sua vida por dinheiro.
— Seu filho da mãe ...
? Mas o senhor ficaria surpreso com a quantidade de pessoas que arriscam — Seu tom de voz era firme, mas indiferente e sua face inexpressiva, como se estivesse discutindo amenidades e não vidas humanas. — Já tive esposas, maridos, filhos e até pais como o senhor que não foram tão cooperativos.
— Pelo jeito você está nisso há um bom tempo — eu disse — Como consegue?
— Senhor, sou profissional. O senhor vende empresas. Alguns vendem drogas, outros, armas. Eu vendo vidas. Simples assim.
— É, mas você as tira antes de vede-las. Não é seu canalha?
— Acho que o senhor não está realmente em posição de me julgar. Muito menos de usar esse tom. Eu mediria minhas palavras daqui para frente se fosse o senhor.
Naquele momento quis matá-lo. Senti uma onda de raiva, me senti sujo, e quis matá-lo. O fato daquele filho da puta estar usando meu filho para ganhar dinheiro! E eu o estava pagando! Não que houvesse algo que eu pudesse fazer, mas queria ter a coragem de enfiar uma bala na cara do maldito. Mas não podia, eu estava na mão dele e ele sabia disso, e para ter meu filho de volta eu precisava me acalmar e seguir com o jogo.
— Contou a alguém?
— Como se eu tivesse coragem — Falei cabisbaixo. Era mentira. Além de mim e minha esposa, meu amigo médico também sabia.
— Siga-me — ele diz, pegando a maleta e se levantando — Ah, e por favor pague a conta, sim?
Me levantei, deixei o dinheiro em cima da mesa e o segui.
Saímos e caminhamos até uma viela próxima ao bar. Havia um furgão branco parado ali, desses que instalam sua TV a cabo, nada fora do comum. O sujeito que dirigia era um senhor de meia idade que usava óculos de aro de tartaruga. Ele se virou do banco do motorista e sorriu para mim, um sorriso sincero, não aquele sorriso sarcástico e irônico que os caras maus tem que ter, mas honesto, e tornava aquilo tudo bizarro demais. Olhei em volta e a rua também estava deserta. Comecei a pensar se não seria tudo um grande pesadelo, mas então o homem do vídeo game se pois em ação, e tudo se resolveu muito depressa.
Ele colocou a maleta com o dinheiro no banco do passageiro e se dirigiu para a porta traseira.
— Vai me entregá-lo agora? — perguntei.
Ele não respondeu, apenas abriu as portas traseiras e então eu o vi. Quis correr e agarrá-lo, mas o homem me impediu. Simplesmente pegou-o e o colocou em meus braços. — Foi um prazer fazer negócio com o senhor — disse ele enquanto entrava no furgão. Depois deu um sinal ao seu motorista e saíram, ele ainda fechando as portas. Fiquei sozinho, segurando-o forte contra o peito, com medo de perdê-lo, sem dizer uma palavra. Havia conseguido, por Deus, havia conseguido. Sonho ou não, agora acabara.
Corri para o meu carro, coloquei-o no banco de trás, entrei, e telefonei para o hospital.
— Quarto 712, por favor.
— Um momento.
Meu amigo médico atendeu, já sabia do que se tratava:
— Está com ele?
— Estou.
— Graças a Deus. Parece bem?
— Sim, parece bem. Como está minha esposa?
— Voltou a ficar nervosa depois que você saiu. Mandei lhe darem um sedativo e ela está dormindo.
— Melhor assim. Estou levando-o pra aí.
— Ótimo. Ainda tem alguns jornalistas insistentes por aqui. Entre pelo estacionamento e pegue o elevador de serviço.
— Está bem.
Estava eufórico, liguei o carro querendo voar dali, mas me contive. Uma batida agora daria um quê de humor à história (Há! Há!), mas não ajudaria em nada. Olhei para ele no banco de trás e agradeci, já conseguia sorrir novamente. Liguei o rádio para me distrair um pouco, no exato momento em que Joey Ramone dizia que “queria andar direto para fora desse mundo, pois todos têm um coração venenoso”. Não poderia ser mais apropriado.
Segui para o hospital no que me pareceu uma eternidade. Não me lembro ao certo que caminho eu tomei, nem lembro como cheguei. Tudo parecia irreal, como se não houvesse mais nada, apenas meu carro, o hospital e uma linha reta entre eles.
Parei na vaga reservada de meu amigo, peguei-o no colo e saí, carregando-o pelo estacionamento que estava lotado. Bom, de carros, não havia mais ninguém ali. A porta do elevador parecia distante, um pequeno retângulo luminoso no fim do pátio escuro. Entrei no elevador e meu nariz foi invadido pelo cheiro forte de desinfetante hospitalar, fazendo meu estômago se revirar. Apertei o sétimo andar e esperei. O confinamento do elevador, misturado ao cheiro do desinfetante estavam me deixando tonto, comecei a suar frio e achei que fosse desmaiar. Por fim o número seis surgiu no painel, depois o sete, seguido de uma campainha. As portas se abriram e eu saí, com passos meio inseguros, para o grande corredor do 7º andar. A enfermeira de plantão estava em seu posto, mas ocupada demais com alguma rede social para notar a minha presença. No corredor à esquerda um funcionário da limpeza se divertia com um esfregão e mais desinfetante (a eterna guerra contra bichinhos invisíveis que podem te matar no hospital, caso você sobreviva ao que te levou ali). Pelo menos o ambiente era amplo o suficiente para dissipar o cheiro, tornando-o menos insuportável. Segui pelo corredor à direita e parei na frente do 712.
Então era assim. Eu mal acreditava que havia conseguido. Meus braços doíam tamanha a força com que eu o apertava no colo. Tudo ficaria bem agora. Respirei fundo e entrei.
O quarto estava escuro, mas arejado. As janelas estavam abertas, mas lá fora os ares de chuva já começavam a se transformar no que viria a ser a maior tempestade dos últimos 10 anos. Acendi as luzes, meu amigo médico estava de pé, me esperando. Minha mulher deitada numa daquelas poltronas grandes de acompanhante de hospital, dormindo. Meus braços relaxaram, coloquei-o no chão e corri meus olhos em direção a cama. Lá estava meu filho, há 20 dias agora, aguardando um transplante de coração, depois que uma infecção viral se transformou em um pesadelo. Quis chorar, mas sorri.
Meu amigo médico saiu, tinha providências a tomar. Tocou meu ombro ao passar e dei-lhe um leve aceno de cabeça. Olhei para minha esposa dormindo e sorri novamente (acho que quando ela acordar tudo terá parecido um sonho ruim). Olhei novamente para meu filho, e por fim ao lado dos meus pés, para a caixa preta contendo o órgão que lhe salvaria a vida. Tudo ficaria bem agora.