Em certo ponto de “Anna Kariênina”, Anna acabou de dar à luz a filha do amante e está à beira da morte. Até ali, ela e o amante, Vrónski, tinham pelo marido traído o desprezo devotado aos pobres-coitados, ao passo que este havia se decidido a desgraçar para sempre a mulher divorciando-se dela. Sua preocupação era, sobretudo, com a própria imagem, com o que pensariam dele. Neste momento, Aleksiei Aleksándrovitch, o marido, que estava viajando, recebe uma mensagem: a mulher está à beira da morte e quer vê-lo. Sua primeira reação é desejar que Anna morra: isto resolveria todos os problemas. Depois pondera o que lhe cabe fazer para manter as aparências. E conclui com as seguintes alternativas: “Se for mentira, um desprezo sereno, e ir embora. Se for verdade, manter a compostura.” (Todas as citações são da edição da CosacNaify, com tradução de Rubens Figueiredo.)
Quando ele chega, Anna delira, mas está mais sã no delírio do que jamais estivera na lucidez. Ao vê-lo, ela cobre o rosto, mas logo descobre e diz: “Não, não, eu não tenho medo dele, tenho medo da morte.” Ao olhá-la nos olhos, Aleksiei “via os olhos dela que o fitavam com tamanha compaixão e com ternura tão exaltada como nunca vira antes”.
Diz ela: “Não se surpreenda comigo. Ainda sou a mesma... Mas em mim há uma outra mulher, tenho medo dela: ela se apaixonou por aquele homem e eu queria odiar você e não conseguia esquecer a mulher que havia antes. Eu não sou ela. Agora sou a verdadeira, sou eu toda. Agora estou morrendo, sei que vou morrer. .... Só preciso de uma coisa: que você me perdoe, me perdoe completamente!”
Aos prantos e soluços, Aleksiei se ajoelha diante de Anna e a perdoa. Anna chama o amante, encolhido em um canto com as mãos no rosto, e ordena: “Descubra o rosto, olhe para ele. ... Vamos, descubra o rosto!” Nenhuma reação. Então o marido traído segura as mãos do amante e as afasta do rosto, “horrendo pela expressão de sofrimento e de vergonha que nele havia”.
Mais tarde, Aleksiei se dirige a Vrónski: “O senhor sabe que me decidi pelo divórcio e até já dei entrada no processo. ... O desejo de vingar-me do senhor e dela me perseguia. ... Mas eu a vi e perdoei. E a felicidade do perdão me revelou o meu dever. Perdoei por completo. Quero oferecer a outra face, quero dar a camisa a quem me toma o casaco, e suplico a Deus que apenas não me tire a felicidade do perdão! ... O senhor pode me espezinhar na lama, escarnecer de mim diante do mundo, não vou abandoná-la e não direi ao senhor nenhuma palavra de recriminação. ... Para mim, minha obrigação está claramente traçada: devo ficar com ela, e ficarei.”
Confuso e desnorteado, Vrónski “sentia-se envergonhado, humilhado, culpado e privado de lavar aquela mancha de humilhação. Sentia-se empurrado para fora do trilho sobre o qual, até então, avançava tão altivo e com tanta facilidade. Todas as regras e as normas da sua vida, que pareciam tão sólidas, de repente se revelaram falsas e inaplicáveis. O marido, o marido enganado, que até então se apresentava como um ser lamentável, um obstáculo fortuito e ligeiramente cômico à sua felicidade, de repente foi chamado por ela mesma, foi erguido a uma altura que inspirava sentimentos servis, e esse marido não se mostrou, em tais alturas, nem maldoso, nem falso, nem ridículo, mas sim bondoso, simples e magnânimo.” Vrónski permanece na confusão por três dias, sem dormir. Repassa a própria vida e conclui: “Tudo isso tinha sentido antes, mas agora já não fazia sentido nenhum.” Depois dá um tiro no peito.
Por que tudo aquilo que era, até então, para os três, mais dotado de valor e de sentido deixou de ter naquele momento qualquer importância? Porque até ali eles pensavam dentro da lógica da vida e a partir dali passaram a pensar dentro da lógica da morte. Que me importa, diante da morte, a compostura e a imagem que os outros têm de mim? Diante da morte, o homem que via na própria reputação seu bem mais valioso já não se importa de ser espezinhado na lama, de ser motivo de escárnio diante do mundo. Diante da morte cada um de nós é ele de verdade, é ele todo.
Então não adianta tapar o rosto envergonhado com a mão. Quando Anna insiste que Vrónski descubra o rosto, está insistindo para que pseudón dê lugar a alethéia, para que a verdade revele a mentira. Naquele momento o véu do templo se rasga em dois: Cesse tudo o que a musa antiga canta, que outro valor mais alto se alevanta. Ali a moral de Aquiles é substituída pela moral de Sócrates, o dente por dente dá lugar ao oferecimento da outra face, saem os fariseus hipócritas e entra o Sermão da Montanha.
O sofrimento, ensina o professor Luiz Gonzaga, é um teste que separa as partes boas e más da alma e nos obriga a escolher uma delas. Anna escolhe implorar pelo perdão do homem que acreditava desprezar. Aleksiei escolhe se ajoelhar diante da mulher que o traiu. Vrónski escolhe dar um tiro no peito. Só quem já se sentiu empurrado para fora do trilho sobre o qual, até então, avançava com altivez e facilidade sabe o que é isto. Só quem já viu todas as regras e normas da própria vida, antes tão sólidas, revelarem-se falsas e inaplicáveis sabe o que é isto. Então tudo o que tinha sentido antes não tem mais sentido nenhum, e somos forçados a escolher entre implorar pelo perdão de quem julgávamos desprezar e ajoelhar-nos diante de quem nos traiu ou dar um tiro no peito.
É isto o que as pessoas querem dizer quando falam em “maturidade”.