Um dos aspectos mais interessantes em saúde é a forma como as pessoas se agrupam ao redor de hábitos alimentares e esportivos. Muitas vezes esses grupos ajudam o indivíduo a trilhar um caminho mais saudável. Mas em alguns casos esses grupos fazem o indivíduo analisar risco em saúde de forma incorreta. Isso tem sido muito frequente entre grupos que se formam em torno de formas restritivas de se alimentar. Um movimento que muito se assemelha a cultos. Pra entender isso é importante entender a relação humana com a alimentação.
No início o ser-humano convivia com falta de conhecimento básico sobre os alimentos ao redor. Por tentativa e erro experimentava-se frutas, plantas, raizes e se caçavam animais. Por mecanismo de seleção natural aqueles que se aproveitavam não só de suas experiências mas também da dos outros indivíduos de seu grupo tinha mais chance de sobreviver. Comer fora do que era aceito socialmente não era apenas uma quebra de convenção, aumentava as chances de morrer precocemente e por consequência não transmitir seus genes para gerações seguintes. Tais características formam a base de uma espécie de inconsciente coletivo alimentar que relacionava comer fora do aceitado socialmente com risco de extinção.
Tal inconsciente influencia a relação dos seres humanos com a alimentação. Após a revolução agrícola passamos a lidar muitas vezes com escassez de alimentos. Sim, escassez. É natural pensar que a revolução agrícola foi logo seguida de abundância alimentar. Mas isso contradiz evidências arqueológicas que demonstram que os agricultures iniciais eram menores e menos nutridos do que os caçadores coletores que viviam na mesma época.
A forte influência do clima nas colheitas faz ser-humano começar a cultuar colheita, alimentos, chuvas e outros elementos climáticos como deuses. Por consequência a alimentação se torna uma forma de relação com o divino. Quase toda religião antiga tem regras sobre alimentação e jejum. Entre as 463 regras de vida Judia descritas no Torah, várias delas são relacionadas à alimentação. A história de Adão e Eva é basicamente a história de alguém que comeu um fruto não aceito socialmente. Comer ganha ares religiosos. É o sagrado contra o profano, nós contra eles. A alimentação em si não era cultuada, mas fazia parte da relação humana com seu grupo étnico social e religioso. Inconsciente coletivo alimentar em conjunto com a associação entre alimentação e o divino se tornam a base dos cultos alimentares atuais.
Superada a escassez alimentar a influência étnico religiosa perdeu força. Começamos a comer por prazer e muitos passaram a direcionar sua vida ao prazer de se alimentar. Comer não faz só parte da relação com o divino, o hábito se torna, para muitos, o principal acesso a ele. Surgem os dois primeiros cultos alimentares. Os cultuadores de junk food e os cultuadores gourmet. Cada um deles acreditando que somente eles sabem o que é comida. A ponto de um dizer que um vegetal não é alimento enquanto segura um cheese burger. E outros dizendo que detestam batata frita e preferem coq-au-vin.
Somente quando os primeiros estudos relacionando os péssimos hábitos alimentares com doenças graves como diabetes, infarto, e neoplasias malignas é que o gatilho para cultos de alimentação saudável é disparado. Se alimentar de maneira saúdavel não era novidade, mas cultuar alimentação saudável só surgiu quando a alimentação por motivos étnicos religiosos começaram a perder força e as consequências da alimentação por prazer ficaram evidentes.
Cada um desses cultos tem uma marca como nome, geralmente um nome em inglês chique, com contornos místicos, ou fazendo referência a algum médico famoso. Cada um desses cultos usa das restrições e do preço dos alimentos permitidos para tornar a dieta algo difícil de ser alcançado. E dessa forma promovem uma espécie de status aos membros do grupo.
Cada culto afirma ter evidências científicas suportando a forma de alimentação escolhida pelo grupo, uma vez que a ciência substituiu nos últimos séculos a religião como principal fonte de confiança em relação à alimentação. Por motivos óbvios a ciência nunca foi (talvez nunca será) capaz de determinar qual é a forma mais adequada de se alimentar. Mas não é o uso de “evidências” científicas que torna os cultos efetivos e sim sua capacidade de apelar para um instinto que temos desde o início do ser-humano na terra. Explicações científicas são apenas uma capa a conversão relacionada à identidade e pertencimento que os cultos assumem. Pertencer a algum grupo e acreditar em alguma “verdade” são sensações poderosas.
Os cultos geralmente se formam ao redor de líderes carismáticos, indivíduos que aparentam ser iluminados por uma verdade superior, e que esbanjam músculos e baixo percentual de gordura para validar suas verdades. Sua estratégia é identificar pessoas suscetíveis a aderir ao culto, geralmente pessoas desesperadas por ter alguma doença crônica ou incurável, ou aqueles que buscam justificativa para suas dificuldades diárias como sensação de inchaço, dificuldade de dormir, dificuldade de se concentrar e outros. Para sugerir a própria iluminação, insinuam a existência de inimigos imaginários, responsáveis pelo mal e por esconder deles a verdade que só o líder carismático revela. Por fim trabalham para fazer o indivíduo sentir que pertence a algo superior a ele mesmo, de forma a mantê-lo no grupo. Se os líderes carismáticos atraem novos membros é a sensação de pertencimento que os faz permanecer no grupo valorizando todo argumento favorável ao padrão alimentar do grupo e desprezando argumentos contrários. O pertencimento promove viés de confirmação e backfire effect.
Se alimentar de forma saudável não torna um indivíduo membro automático de algum culto. Se alimentar de maneira saudável, considerando as características onívoras do ser humano deve ser sim buscado. O que configura um culto, no entanto, é a crença exagerada de seus membros nos efeitos protetores da dieta que está se seguindo, na incapacidade de enxergar falhas científicas em seus argumentos, de não ver vantagens em outros tipos de dietas provocando desprezo por outros seres humanos que não estão inseridos no grupo.
O mecanismo de culto se torna perigoso por deturpar análise de risco em saúde do indivíduo. Fazendo muitos acreditarem que serão capazes de tratar doenças graves com a troca de padrão alimentar, ou de estender seu tempo de vida na terra. Acreditando que assim estão fugindo das mentiras dos inimigos imaginários. Os cultos muitas vezes levam o indivíduo a sacrificar sua saúde por um ideal, e muitos que tentam sair do culto experimentam um sentimento de culpa e traição. Uma vez que o indivíduo foi convencido por muito tempo que o que ele seguia não era apenas uma forma de se alimentar e sim uma verdade superior que poderia salvar a humanidade.
Para superar esses cultos é importante saber que não existe certeza científica sobre nenhum tipo de dieta específica. Sabemos no entanto que a dieta moderna com alto teor de carboidratos simples, gorduras trans, açúcar e alimentos processados é parte ativa do processo de várias doenças. Mas isso não significa que seja necessário ir ao extremo de nunca mais consumir nada disso. Saúde é uma conquista pessoal, não é necessário viver sobre as regras de um grupo específico. Fazer o que é melhor pra você mesmo envolve tempo de auto-conhecimento. É preciso tirar um pouco do peso da alimentação na sua vida. Ninguém fica obeso e aumenta o risco de morrer por comer o doce que a avó faz uma vez por mês. Lembre-se que bem estar social e se cercar de pessoas que realmente te apreciam também é saúde.
Buscar um equilíbrio pessoal consumindo em sua maioria alimentos não processados ou ultraprocessados de todos os grupos alimentares. Recuperando a consciência de quando estamos sentindo fome ou apenas querendo comer. Sem fazer dietas restritivas de curto prazo e sem se considerar como integrante de membros que comem igual a você é um caminho bem seguro para se manter saudável sem subestimar os fatores que influenciam nossa saúde mas sobre os quais não temos controle. Os cultos não são necessários.