A residência médica é um processo necessário para qualquer médico geral se tornar um especialista, seja clinicando ou realizando cirurgias. A maioria dos programas de residência médica exigem muito da carga horária dos residentes, fazendo-os trabalhar 60 horas semanais (no papel) e, várias vezes, muito além disso. A remuneração de cerca de 3 mil reais por mês dificilmente condiz com a relevância e a responsabilidade do serviço prestado e, ainda, obriga a maioria dos residentes a trabalharem em outros serviços para cobrirem suas despesas. Não estamos aqui, porém, para falar da residência em si, mas de sua origem. A história de como tudo isso começou é simplesmente fascinante.
Estamos por volta da década 1880 na conceituada Universidade de John Hopkins, nos EUA. Nosso protagonista é William Halsted, um cirurgião brilhante e pioneiro no uso de várias técnicas de assepsia, de diferentes cirúrgias oncológicas e de mecanismos para mitigar os efeitos colaterais de um procedimento cirúrgico. Ele também dedicou boa parte de suas pesquisas ao efeito de agentes anestésicos, estudando principalmente o uso da cocaína como um deles.
Halsted acreditava que para lidar propriamente com a vida dos pacientes, os médicos recém-formados precisavam literalmente residir no hospital, a fim de que a aprendizagem fosse maximizada. Era muito difícil argumentar contra ele, afinal ele praticava o que defendia. Para esse cirurgião, dormir era uma perda de tempo e quanto mais ele se dedicava ao trabalho, mais ele atingia resultados surpreendentes. Mais tarde, ele viria a ser conhecido como o "pai da cirurgia moderna". Como ele poderia estar errado sobre o treinamento de novos médicos? Assim, ele acabou criando o primeiro programa formal de residência para médicos que desejavam se tornar cirurgiões, em que eram necessários pelo menos 8 anos de treinamentos intensos até que um médico pudesse estar apto a realizar cirurgias por conta própria. Em pouco tempo, esses programas se espalharam pelo país, e outros países, como o Brasil, acabaram importando as principais ideias desse modelo.
O grande problema é que, após a sua morte em 1922 aos 69 anos de idade, descobre-se que Halsted era viciado em cocaína. Ele injetava a droga em si mesmo para estudar seus efeitos no corpo humano, visando utilizá-la como bloqueadora de dor durante procedimentos cirúrgicos e acabou se tornando dependente dela. Relatos de que, a partir de um certo ponto da carreira, Halsted não conseguia mais operar, devido à tremulação de suas mãos, começam a fazer sentido. Revelou-se também que ele tentou tentou reabilitação em clínicas tanto nos EUA quanto na Europa, utilizando seu nome do meio para não ser identificado. Sem dúvidas, William Halsted deixou uma excelente herança para o desenvolvimento da medicina moderna. Entretanto, graças à cocaína, ele também deixou como legado essa equivocada mensagem de que quanto mais se trabalha e menos se dorme, mais se aprende e se produz.
O triste mesmo é saber que toda uma cultura em torno do treinamento médico foi criada por conta de um cirurgião, que apesar de muito compentente, estava artificialmente estimulado por uma droga perigosíssima. Não à toa, infelizmente, é muito comum ver médicos utilizando essa e outras drogas maléficas, como morfina e pílulas sedativas para dormir, a fim de suportarem essa rotina tão exaustiva. Esse é um problema real não apenas para os residentes, como também para quem está sendo atendidos por eles. As evidências da relação entre a falta de um sono de qualidade e erros médicos são muito claras. Só para dar um número, médicos que não dormiram pelo menos 6h na noite anterior têm 170% a mais de chance de cometerem algum erro durante uma cirurgia. Ainda que não estejamos falando de cirurgias, um médico com o sono atrasado provavelmente não vai tomar as melhores providências clínicas, já que a região do cérebro mais afetada pela falta de sono é o córtex pré-frontal, considerado o CEO do orgão, responsável por pensamentos lógicos e tomadas de decisão.
Minha intenção aqui não é defender uma alteração total do sistema de residências médicas. Não entendo suficientemente de pedagogia e aprendizado para me meter nisso. Só achei uma história realmente bem interessante e que talvez sirva de argumento para aqueles que tentam combater o velho papo do "eu passei por isso, logo todo mundo tem que passar também".