Como prometido no tópico de Central de Mensagens sobre o Coronavírus, decidi fazer um tópico falando sobre imunologia e sobre como uma vacina atua. Se houver algum imunologista de plantão e eu falar alguma bobagem pode me corrigir nos comentários.
Alerta: Vai ser grande. Vou tentar resumir quase meia disciplina de imunologia básica em um tópico.
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Primeiramente decidi fazer um overview sobre o sistema imunológico em si e sobre seus componentes para falar do que realmente interessa logo depois.
#####################################Sistema imunológico
Nosso sistema imunológico é essencial para nossa sobrevivência. Sem ele nosso organismo é uma via livre para infecções virais, bacterianas e fúngicas.
Englobam nosso sistema imunológico diversos tipos de células, órgãos, proteínas e tecidos.
O papel principal do sistema imunológico é distinguir o "self" do "not self", ou o que é tecido próprio do organismo do que não é tecido do nosso organismo. E ao encontrar algo estranho, iniciar uma complexa resposta de destruição desse corpo estranho, sendo a resposta variável dependendo se a ameaça é um vírus, uma bactéria, um fungo ou até uma farpa de madeira que feriu nosso dedo ou poeira inalada.
E ao detectar o que não é propriamente do nosso corpo, o sistema imunológico é o responsável por realizar a defesa contra infecções, combater células tumorais (neoplásicas, ou cancerígenas), além de realizar ataques a órgãos transplantados (por isso transplantados devem realizar tratamento pro resto da vida visando evitar a rejeição do órgão transplantado). O sistema imunológico também pode ser o responsável por desenvolvimento de doenças auto-imunes como lúpus, artrite reumatoide e diabetes tipo I.
Órgãos do sistema imunológico
Existem diversos órgãos importantes no nosso sistema imunológico. Vou abordar alguns deles.
Timo (A): órgão localizado mais ou menos pouco abaixo do pescoço. Funciona meio que como um campo de treinamento para linfócitos, que são gerados na medula óssea, serem "treinados" e virarem linfócitos T maduros (ainda vou abordar os tipos de célula logo abaixo).
Fígado (B): sintetiza proteínas importantes para a resposta imunológica, além de ser o "lar" de células fagocitárias que "digerem" bactérias que passam pelos vasos sanguíneos que irrigam o órgão.
Medula óssea (C): a fábrica de nossas células sanguíneas. É lá que células do sistema imune começam seu desenvolvimento a partir de células-tronco.
Linfonodos (E): órgãos que armazenam coleções de linfócitos tipo B e linfócitos tipo T (explicados na parte de
células).
Baço (F): local onde há diversos linfócitos T, linfócitos B e monócitos.
Sangue (G): meio e vias de transporte das células do sistema imune.
Células e componentes do sistema imunológico
No geral, chamamos as células que englobam o sistema imunológico de células branca ou leucócitos (que diferem das células vermelhas ou hemácias, que são responsáveis pelo transporte de oxigênio e gás carbônico). Dentre os leucócitos temos principalmente os linfócitos, monócitos, basófilos, eosinófilos e neutrófilos. Monócitos podem se diferenciar em macrófagos também. Há também outras células como os mastócitos.

A partir da medula óssea, células do sistema imune de desenvolvem e se diferenciam nas mais diversas células que englobam a "linha de frente" do nosso sistema imunológico.
Células tronco (B): células que ainda irão sofrer diferenciação e maturação nas mais diferentes células do sistema imunológico.
Células B (D): são linfócitos (linfócitos B) que maturam na medula óssea e se diferenciam em plasmócitos (G), que são as células que produzem imunoglobulinas (
anticorpos) (H). Os anticorpos podem ser IgA, IgM, IgG, IgD e IgE.
Células T citotóxicas (E): também são linfócitos, mas sofrem maturação no Timo e são responsáveis por matar células infectadas por patógenos.
Células T Helper (F): também linfócitos T (T helper) especializados e que "ajudam" outras células T e outras células B a realizarem suas funções.
Plasmócito (G): Célula diferenciada a partir de um linfócito B. São as células que efetivamente produzem anticorpos.
Imunoglobulinas (anticorpos) (H): proteínas altamente especializadas que encaixam suas extremidades em antígenos (o nome vem de antigen, que é antibody generator, ou produtor de anticorpos), que nada mais são do que sítios em corpos estranhos como vírus e bactérias, tal como a proteína spike do Sars-Cov-2. Chama-se esse mecanismo de encaixe como um mecanismo de chave e fechadura. A possibilidade de atuação de anticorpos é extensa.
Polimorfonucleares (I): são os neutrófilos que falei logo acima. São a maioria na corrente sanguínea e são células que rapidamente "ingerem" microorganismos, destruindo-os.
Monócitos (J): tipo de célula fagocitária (que digere outras células). Na corrente sanguínea é monócito mas ele extravasa para fora dos vasos sanguíneos e se desenvolve em macrófagos quando presente nos tecidos.
Hemácias (K): células vermelhas, que transportam oxigênio dos pulmões para os tecidos e retorna gás carbônico dos tecidos para os pulmões. Não faz necessariamente parte do sistema imunológico mas vale a pena a lembrança.
Plaquetas (L): também não faz parte do sistema imunológico mas são fragmentos de células responsáveis pela coagulação.
Células dendríticas (M): importantes células apresentadoras de antígenos (APC).
Tipos de imunidade
Imunidade inata: não precisa de uma diferenciação de células. Inclue as barreiras externas do nosso organismo como nossa pele e nossas mucosas (boca, olhos...). Realiza uma resposta mais generalista e menos específica. Se o patógeno conseguir quebrar essa barreira inicial a imunidade adaptativa entra em ação.
Imunidade adaptativa ou adquirida: proteção especializada contra patógenos que nosso corpo vai desenvolvendo ao longo da vida (e isso explica também porque crianças ficam mais doentes do que adultos, pois crianças ainda não desenvolveram uma imunidade adquirida adequada). À medida que nos expomos a agentes infecciosos ou somos vacinados, desenvolvemos uma "base de dados" de defesa contra diferentes patógenos. Pode-se dividir a imunidade adaptativa em
imunidade celular e
imunidade humoral (por anticorpos).Imunidade passiva: imunidade "emprestada" de outra fonte. Não dura pra sempre. Exemplo é soro anti ofídico contra picada de cobra, ou os anticorpos que bebês recebem da mãe por meio da placenta ou por aleitamento materno.
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Como as células se orquestram no ataque a patógenos

Primeiramente há a imunidade inata agindo. No caso de uma infecção respiratória como a causada pelo Sars-Cov-2, a mucosa das narinas é um exemplo de barreira da imunidade inata.
Caso o patógeno consiga ultrapassar a imunidade inata, começa a resposta adaptativa, que leva alguns dias para acontecer.

A resposta adaptativa começa com uma célula apresentadora de antígeno (APC) como a célula dendrítica. A APC captura o antígeno e migra para algum órgão satélite como um linfonodo, no qual esse antígeno será apresentado para células T "naive", ou indiferenciadas.
Esses linfócitos T irão se diferenciar em linfócitos T citotóxicos e linfócitos T helper, conforme comentamos acima.

Havendo a diferenciação, os linfócitos T diferenciados irão migrar para o tecido doente e no caso dos linfócitos T citotóxicos, eles atuarão destruindo as células infectadas pelo patógeno (como um vírus), se ligando a alvos específicos na célula a ser destruída e efetuando sua destruição. Podemos dizer que esse mecanismo é parte da resposta de
imunidade celular.
Já os linfócitos T helper irão atuar juntamente aos linfócitos B para realizarem a produção de anticorpos, que respondem pela
imunidade humoral. Irão também produzir substâncias chamadas citocinas que ativam macrófagos (células que fagocitam ou ingerem corpos estranhos), e produzem inflamação.
Com a diferenciação dos linfócitos T, parte irá para a "linha de frente", no caso dos linfócitos T citotóxicos, parte irá atuar em conjunto com os linfócitos B e parte irá formar células T de memória, que numa próxima "invasão" desse patógeno no nosso organismo, será responsável por gerar a resposta de células T de uma forma bem mais rápida.
Como dito acima, os linfócitos T helper, gerados a partir da ativação de linfócitos T indiferenciados, irão atuar em conjunto com linfócitos B para produção de anticorpos. A ativação de linfócitos B pode ocorrer dessa forma como pode ocorrer também por meio de contato com o próprio corpo estranho (antígeno).

Com a ativação de células B ou linfócitos B, essas células se dividem e se diferenciam em plasmócitos e células B de memória. Os plasmócitos irão efetuamente gerar anticorpos enquanto as células B de memória irão servir para num próximo contato com o patógeno essa resposta ser realizada de forma muito mais rápida.
Aqui eu poderia detalhar os tipos de anticorpos e suas características mas este livro vai ficar maior do que já está então vou deixar para uma próxima.
Enfim, os anticorpos gerados são liberados na corrente sanguínea e se ligam a células que devem ser consideradas alvos e devem ser destruídas por células como os linfócitos T citotóxicos e macrófagos (que são monócitos diferenciados). Esses alvos incluem bactérias, fungos e células contaminadas por vírus (já que vírus são seres que obrigatoriamente precisam infectar uma célula para se reproduzirem, então eles se fazem presente dentro das células).
Abaixo um sumário de como essa resposta do sistema imunológico ocorre:
E como nosso corpo combate infecções virais?
Vírus são parasitas intracelulares obrigatórios. Eles precisam estar dentro de uma célula para se dividirem. E isso é um "problema" porque estando dentro de uma célula, eles "escapam" de nosso sistema imunológico a um primeiro momento.
Quando um vírus infecta uma célula, esta libera substâncias chamadas citocinas para alertar as células ao redor que há algo de podre ocorrendo ali. Esse alerta a um primeiro momento pode ajudar a prevenir células ao redor de serem infectadas, mas há vírus que conseguem evitar essa primeira defesa e infectar células ao redor também com sucesso.
Linfócitos T e outra célula que detalhei pouco aqui, a célula Natural Killer, são avisadas dessa invasão viral e migram para o tecido doente, iniciando a resposta imunológica ali e destruindo as células doentes. É um processo bem efetivo mas todas as células doentes são destruídas. É nosso corpo destruindo nossas próprias células que estão doentes.
E enquanto ocorre essa resposta por células T, destruindo as células contaminadas pelos vírus, células T helper instruem linfócitos B para se diferenciarem e produzirem anticorpos. Esses anticorpos irão se ligar a células doentes e acelerarem a destruição delas por células T citotóxicas. E numa próxima infecção, as células T e B de memória irão acelerar esse processo de proliferação e produção de anticorpos e gerar uma resposta muito mais rápida.
Como vacinas agem?
Vacinas induzem a geração de imunidade adaptativa ou adquirida tal qual explicado acima, com a invasão de um patógeno. Mas no caso da vacina, não há a invasão de um patógeno viável.
Existem diversas formas de se produzir vacinas e só isso já dava outro tópico mas no geral vacinas são produzidas com partes dos patógenos, como partes de um vírus, e há a inoculação desses antígenos (inviáveis para gerar doença mas viáveis para produzir resposta imunológica) no tecido muscular de quem vai ser vacinado.
Ao inocular uma vacina em um indivíduo, toda a cascata de imunidade adquirida acima irá ocorrer. O antígeno será "ingerido" por uma célula apresentadora de antígeno (APC), essa célula irá migrar para órgãos satélites para apresentar o antígeno para linfócitos indiferenciados, que irão se diferenciar em linfócitos T citotóxicos, linfócitos T helper, linfócitos T de memória, linfócitos B, que por sua vez irão gerar plasmócitos ou linfócitos B de memória e as células de memória irão garantir que um próximo contato com esse corpo estranho irá gerar uma resposta rápida.
E por que algumas vacinas precisamos tomar várias vezes?Vírus se replicam e ao se replicar misturam material genético, inclusive com material genético da célula hospedeira. E nessas replicações podem haver mutações e o material genético gerado ser levemente diferente do material genético original. Agora escalem isso para milhões, bilhões de replicações e o material genético que está sendo gerado vai ficando cada vez mais diferente do material original.
O material genético é usado para dentre outras coisas produzir as proteínas que o vírus usa para ter uma "forma" definida. Então se há lá no material genético do vírus uma sequência responsável por produzir uma proteína X na sua superfície, à medida que mais replicações vão ocorrendo essa proteína X vai ficando com uma estrutura diferente. E essa diferenciação pode escapar da ação das células de defesa e dos anticorpos circulantes e ser necessário gerar toda uma nova cascata de imunidade adaptativa quase que do zero.
Por isso algumas vacinas precisamos "renovar" e "relembrar" nosso corpo como aquele organismo estranho agora atua. Claro, a cada nova dose da vacina o antígeno é atualizado para poder englobar as novas mutações.
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Ufa, ficou gigante mas era isso. Se quiserem cenas dos próximos capítulos, como explicar um pouco mais sobre os tipos de anticorpos ou mais sobre o ataque do organismo a patógenos como vírus e até bactérias, que não expliquei acima, comentem aí.
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Fontes:
The immune system: Cells, tissues, function, and diseasehttp://lineu.icb.usp.br/~farmacia/matsup/AbbasOverview.pdfImmune system - WikipediaThe Immune System and Primary Immunodeficiency | Immune Deficiency Foundation