Tive a sorte, até o momento, de na vida não ter que lidar com perdas trágicas muito próximas. Nunca vi um parente do núcleo duro familiar partir, com a exceção de dois avós quando eu era bem mais novo (um deles, tão novo que não entendi a passagem), nem uma companheira ou mesmo um grande amigo de infância.
Também tive a sorte de não perder ninguém da convivência mais próxima nesse período de pandemia. Até semana passada. Meu supervisor direto depois de um mês internado, faleceu na madrugada do sábado.
Ironia do destino, a minha primeira dose da vacina estava agendada para domingo de manhã. E domingo à tarde, estava eu no velório me despedindo dele. Nós trabalhávamos há pouco tempo: desde fevereiro de 2021. Eu o conheci num evento internacional em fevereiro de 2019, quando ele terminou participando de uma mesa redonda que eu organizei e estivemos juntos novamente em outro evento internacional em fevereiro de 2020. Fiquei encantado com o projeto que ele liderava no Brasil e, quando me enviaram uma vaga para trabalhar nele, no fim do ano passado, me inscrevi imediatamente, num momento em que eu queria e precisava mudar de ares.
Ele foi quem me entrevistou e, na véspera do Natal, me avisou que eu tinha sido selecionado pra vaga. Ele, alemão e sempre muito direto, era muito exigente nas suas demandas, mas um cara com foco na gestão de pessoas: sabendo que eu vinha do exterior, me concedeu um benefício exclusivo pra expatriados de acomodação nos primeiros dias e também aprovou um adiantamento de salário, que em regra eu só podia receber depois de três meses de contrato, pra que eu pudesse mobiliar meu novo apartamento em Brasília sem mexer na minha RE em dólar. Fez também, logo depois que cheguei, uma pequena reunião com toda equipe, na casa dele, pra me dar as boas-vindas e conhecer toda equipe.
EU não esperava a partida dele. Já tinha tomado as duas doses da vacina. Estava bem fisicamente para os seus 69 anos e esse era o seu último projeto antes de se aposentar compulsoriamente aos 70. O cara fez tudo by the book. Trabalhou a vida inteira, tinha uma esposa (brasileira) fantástica, uma filha e uma netinha. Estava fechando a carreira no país que considerava sua segunda casa. Para mim, não era justo que ele se fosse agora. Era a hora dele já pensar nos planos que tinha feito com a esposa. Se dedicar a consultoria, ficar o verão europeu na Alemanha e o inverno europeu na casa sensacional que eles construíram em Brasília. Não foi fácil ter sido o primeiro a abrir o caixão dele logo que chegou no velório (ele morreu das consequências do Covid, mas muito depois dos 15 dias da doença, então os médicos permitiram o velório). Menos ainda, ter aberto novamente e ver a querida esposa dele em desespero ao vê-lo.
Meu chefe e amigo foi internado num domingo, há pouco mais de um mês. Na quarta-feira, ele abriu um webinário que eu organizei e moderei. Quando fui apresentá-lo, por algum motivo eu disse, ipsis literis, "Agora eu queria apresentar alguém que eu tenho muita honra em trabalhar com - e aí vão dizer aqui que eu sou um puxa-saco, mas não é verdade - porque eu tive a sorte de ainda conseguir ter o Dr. XXX como meu supervisor, porque infelizmente esse é o seu último projeto antes de se aposentar e...(apresentação do currículo)". Na hora, lembro de ter comentado com minha companheira que eu me senti meio estranho de ter passado a sensação de puxa-saquismo, porque aquilo não foi planejado. Essa homenagem agora está inclusive gravada no YouTube e eu a revi há pouco tempo e, pela primeira vez, depois de sua morte, chorei. O choro era por eu ter me sentido mal pela homenagem naquele momento. Foi a melhor coisa que pude fazer: expressar a minha gratidão a ele em vida. Na sexta-feira depois do evento, ele tinha que assinar alguns documentos e me avisou que estava febril e que sua esposa, que também tinha as duas doses, tinha testado positivo pra Covid. O meu último e-mail de trabalho com ele é ele me pedindo desculpa porque tinha atrasado as assinaturas do documento porque não havia se sentido bem durante o dia.
Além de chefe, por causa dessa relação prévia e por termos países comuns na nossa trajetória, conversávamos ao telefone mais como amigos do que como supervisor e subordinado. Meus pais vieram pra cá e ele queria organizar um jantar - um prato típico de Guiné-Bissau - pra eles, mas não deu tempo. Também não deu tempo dele e da esposa jantarem comigo e minha esposa aqui em casa. Esperávamos a vacinação e os 20 dias após isso. A sensação que tenho é de saudade do futuro, de uma nostalgia do que planejamos e não fixemos, das estórias que não ouvi dele e do que poderia ter aprendido trabalhando com ele.
Fica também a gratidão. Tem algumas pessoas que encontramos pela vida que fazem a gente mudar de rota. Parte da minha felicidade de hoje morar no meu país, perto de minha família e num projeto que eu gosto muito eu devo a ele. Àquele momento que nos conhecemos em 2019. Desculpem o relato longo. Contar essa estória e homenageá-lo mais uma vez é parte do meu luto. Parte da minha tentativa de aprender a lidar com morte de pessoas próximas.