Data original: 31/10/2021
Estava relendo aqui o Sobre a Brevidade da Vida, uma coletânea de cartas de Sêneca a Paulínio sobre o uso do tempo.
Nunca tinha me atentado para a semelhança entre o sonho de ócio de Augusto, mencionado no começo da obra, com a visão idealizada de aposentadoria que é muito forte hoje em dia.
Desde muito tempo, as pessoas vivem ocupadas e sonham com o dia em que se libertarão do sofrimento dessas ocupações. A tese de Sêneca é que, nisso, adiam a própria vida para um momento futuro, por isso se arrependem do tempo perdido e uma hora se veem à beira da morte, que pode chegar a qualquer instante, sentindo como se tivessem desperdiçado a vida com coisas fúteis.
Como solução, o filósofo propõe que cada um deve se ocupar durante toda a vida em aprender a viver e a morrer, dedicando seu tempo não apenas aos outros, mas também e principalmente a si, ao desenvolvimento de suas virtudes e de sua tranquilidade. Para Sêneca, não há bem mais importante que o próprio tempo, o qual deve ser utilizado com qualidade.
Acredito que é possível interpretar a mensagem de uma maneira mais ampla. Vejam se a ideia problemática de se ocupar do futuro e esquecer o presente não pode ser aplicada a muitos aspectos da nossa vida, não apenas a aposentadoria e outros assuntos financeiros.
Selecionei alguns trechos iniciais apenas para incitar a curiosidade sobre a obra, pois do contrário ficaria longo demais (e poderia haver problemas com direitos autorais). Destaquei passagens que julguei marcantes.
Sobre a Brevidade da Vida"1. Poderás ver os homens mais poderosos, ocupando os mais altos cargos, demonstrarem que querem e louvam o ócio, preferindo-o a todos os seus bens. Desejam, por pouco que seja, abrir mão de sua posição, se possível com segurança, pois, embora nada que venha de fora a ameace ou abale, por si mesma a fortuna se desfaz. 2.
O divino Augusto, a quem os deuses favoreceram mais do que a qualquer outro, não deixou de querer para si o descanso e o afastamento dos assuntos públicos. Toda a vez que se pronunciava, retomava o mesmo ponto: o desejo do ócio. Isso deixava seu trabalho mais leve com o consolo, falso, mas doce, de que, um dia, haveria de viver para si mesmo. 3. Em certa carta enviada ao Senado, como prometesse que seu repouso não seria desprovido de dignidade e seria condizente com a sua glória passada, encontrei essas palavras: “Estas coisas são mais fáceis falar que fazer. No entanto, o desejo daquele tempo, que tanto sonho, me anima de tal maneira que antecedo algo do desejado pela doçura das palavras pronunciadas”. 4.
O ócio era uma coisa tão desejada que, por não poder dele desfrutar, antegozava-o em pensamento. Aquele que via as coisas dependerem só de si, que decidia a sorte dos homens e das nações, com muito prazer sonhava com o dia em que se despojaria de sua magnitude. 5. Estava consciente de quanto suor exigiam aqueles bens que brilhavam por todas as terras, de quantas inquietações reprimidas eles ocultavam. Levado, primeiro, a combater os cidadãos, depois, os amigos e, por fim, os mais próximos, no mar e na terra, fez derramar sangue. (...) 6. (...) Arrancava esses males com as próprias mãos e outros já apareciam; tal como num corpo ferido e sangrando, uma outra parte sempre se rompia. Por essa razão, desejava o ócio, e todo o seu empenho centrava-se nisso.
Esse era o desejo daquele que podia satisfazer os desejos de todos os demais.(...)
3. (...) Nada está mais longe do homem ocupado do que viver, nenhuma coisa é mais difícil de aprender. Para todas as outras artes, há muitos mestres em diferentes lugares, dentre os quais encontram-se até mesmo crianças com habilidade para ensiná-las.
Deve-se aprender a viver por toda a vida e, por mais que te admires, durante toda a vida se deve aprender a morrer. 4. Muitos dos maiores homens, afastados todos os obstáculos, renunciadas as riquezas, os negócios e os prazeres, usaram o seu tempo até o fim para aprender a viver; muitos, contudo, deixaram a vida confessando não ter aprendido, muito menos aprenderam aqueles dos quais já falei. (...) 6. Mas não há motivos para que penses que eles não percebem seus erros; certamente ouvirás muitos que são pressionados pela sua grande prosperidade, às vezes, a clamar, no meio da multidão de clientes, ou de suas causas jurídicas, ou de outras honrosas misérias: “Não me permitem viver!” 7. E por que permitiriam? Todos os que te reclamam para si te afastam de tuas ocupações. Quantos dias te levou aquele réu? E aquele candidato? E aquela velha, cansada de enterrar herdeiros? E aquele que finge ser doente para exercitar a cobiça dos caçadores de testamentos? E aquele amigo poderoso, que te quer não como amigo, mas como parte de seu cortejo? Faz a conta dos dias de tua vida, perceberás que poucos restaram para ti mesmo. 8. Tendo aquele conseguido os cargos com os quais sonhava, deseja largá-los e repete sem cansar: “Quando este ano passará?”. Outro proporciona jogos públicos, os quais desejou que lhe coubessem por sorte e diz: “Quando ficarei livre deles?”.
Cada um se lança à vida, sofrendo da ânsia do futuro e do tédio do presente. 9. Mas aquele que utiliza todo o tempo apenas consigo mesmo, que organiza todos os dias como se fosse o último, não deseja, nem teme o amanhã. Que novo prazer existe que qualquer hora já não lhe possa trazer? Conhece todas as coisas, tudo foi desfrutado à saciedade. Do que falta, que o destino disponha como quiser: a vida já está assegurada. Nada lhe pode ser adicionado ou retirado e, mesmo que se acrescente alguma coisa, seria como alimentar o que já está farto de qualquer alimento, ou seja, receber o que não mais deseja. 10. Não julgues que alguém viveu muito por causa de suas rugas e cabelos brancos: ele não viveu muito, apenas existiu por muito tempo. (...)
(...)
1. Pode haver alguma coisa mais tola, me diga, que a maneira de viver desses homens que deixam a prudência de lado?
Vivem ocupados para poder viver melhor: acumulam a vida, dissipando-a. Fazem seus projetos para longo tempo, porém esse adiamento é prejudicial para a vida, já que nos tira o dia a dia, rouba o presente comprometendo o futuro. A expectativa é o maior impedimento para viver: leva-nos para o amanhã e faz com que se perca o presente. Daquilo que depende do destino, abres mão; do que depende de ti, deixas fugir. Para onde te voltas, para o que te dedicas? Todas as coisas que virão jazem na incerteza: vive daqui para diante. (...) 5.
Do mesmo modo que uma conversa, uma leitura ou qualquer reflexão maior desvia a atenção do viajante, que, de repente, se vê chegando ao seu destino sem perceber que dele se aproximava, assim é o caminho da vida, incessante e muito rápido, que, dormindo ou acordados, fazemos com um mesmo passo e que, aos ocupados, não é evidente, exceto quando chegam ao fim."