Hoje eu perdi um grande amigo. Uma das pessoas por quem eu nutria mais carinho e que, sei, era recíproco.
Conheci o Yura quando eu tinha 25 anos e eles 59. O contrato em que estávamos tinha uma limitação de idade (de 25 a 60) e estávamos no extremo oposto. Era improvável a nossa aproximação, mas Yura já tinha muita história de vida pra contar e eu adorava ouvir as histórias dele. Foi o maior piadista que já conheci. Dizia que era uma tradição do seu país: a Armênia. De colegas, rapidamente viramos grandes e inseparáveis amigos. E não demorou pra ele me chamar de "meu filho" e eu de o chamar de kota (expressão angolana para pessoas mais velhas) ou Yura jan (querido, em armeno).
Yura trabalhou a vida inteira em lugares remotos e difíceis. Quando o conheci, em Angola, ele já tinha estado lá 10 anos antes, quando o país ainda estava em guerra. Tinha vivido em Moçambique com a família, e tinha vivido sozinho no Timor-Leste e no Kosovo, por duas vezes. O seu senso de missão me inspirou no começo da minha vida profissional, mas também aprendi com o meu Kota que, ao contrário do que ele fazia, o trabalho não pode ser tudo na vida.
Yura não conseguiu se aposentar. Ele entrou em depressão ao voltar a Armênia e finalmente poder usufruir do belo patrimônio que deixou pra família, da convivência das filhas e netos. Eu fui a Armênia em 2019 quando as coisas estavam bem complicadas pra ele, em especial na relação com sua esposa Flora. As filhas, que eu só conhecia remotamente, me receberam como um irmão. Como o irmão que finalmente ia conseguir mediar o problema entre os pais, sendo que já havia conhecido Flora, que quando ficava com Yura em minha casa, cozinhava banquetes pra mim e fazia questão de deixar comida congelada como se eu filho dela também fosse. Numa das idas a minha casa, eles me deram um pequeno objeto armeno e abençoaram em minha frente, dizendo que aquilo sempre iria me proteger.
Consegui uma vez organizar um encontro entre meus pais e Yura. Eles já se conheciam por vídeo e tinham feito piadas juntos. Será um dia que jamais esquecerei. Estávamos no jardim da casa dele, fazendo um churrasco e todos estavam ali como se íntimos fossem há muito tempo. Talvez a amizade que a gente tinha possuía essa capacidade de contaminar quem tivesse a volta. Talvez era só mesmo a maneira irresistível e piadista de Yura, querido por todos. Uma vez, um colega que estava encantado em conhecê-lo solta na mesa: "Yura, eu gosto muito de ti". E ele respondeu: "Pacheco, eu também gosto muito de mim". E saiu andando e todos, claro, se acabaram de rir.
Foi o mesmo quando Yura conheceu minha atual esposa, quando ainda namorada. Ele já havia conhecido algumas namoradas, mas falou que aquela era diferente. Tanto que um dia, do nada, ele me chega com uma grana vultosa e me entrega. E me diz: "Esse é teu presente de casamento. Não sei se conseguirei ir na cerimônia, mas já quero te dar". Eu tentei de todas as formas devolver, mas era impossível. Isso era outra briga nossa. Sempre que saímos, quem iria pagar a conta. Eu sempre tinha que fingir ir no banheiro e pagar a conta antes. Mas muitas vezes não dava certo porque ele já tinha combinado com o garçom ou sido mais rápido.
Quando casei em Março deste ano, mais de cinco anos depois do presente que ele me deu, de fato, Yura não tinha saúde para vir a minha celebração. E nem as condições da Armênia, em conflito com o Azerbaijão, teriam permitido a viagem. O meu plano era que ele e minha querida madrinha, que também não pode vir pelo Alzheimer, pudessem entrar juntos, depois dos meus pais, porque família, felizmente a gente também pode escolher e porque sobretudo o amor é soma. Sem nenhum prejuízo ao amor e à minha relação com meu pai, Yura foi um segundo pai que a vida me deu. Um pai que eu infelizmente não poderei estar presente em seu enterro, mas que sempre viverá dentro de mim.