Mas é importante que você tenha uma...
Uma das coisas mais esperadas da psicologia e da psicoterapia é o um tal de “autoconhecimento”.
Inúmeras linhas da psicologia afirmam que esse conceito é o objetivo primordial da psicologia, e, ao mesmo tempo, a possível cura para todos os males.
Na cultura popular, esse conceito, tão aclamado e buscado, é frequentemente visto como a chave para desbloquear o potencial humano e resolver conflitos internos. No entanto, eu me questiono: será que o autoconhecimento é realmente a panaceia que muitos acreditam ser? Ou será que sua importância é, por vezes, superestimada, fazendo com que as pessoas fiquem correndo atrás do próprio rabo?
O problema não está na palavra “autoconhecimento” e sim no uso dela. Palavras não significam nada, só são tão boas quanto suas definições.
A definição mais comum de autoconhecimento que observo é a histórica. Nessa perspectiva, a ideia central seria tornar-se um historiador da própria vida, buscando desvendar os segredos ocultos do passado para construir uma narrativa que explique a formação da pessoa.
Essa abordagem, embora possa oferecer insights valiosos e proporcionar uma compreensão mais profunda de si mesmo, muitas vezes leva as pessoas a ficarem presas em um ciclo interminável de análise do passado. Nesse processo, elas podem se ver constantemente revisitando experiências antigas, dissecando cada detalhe de suas memórias, sem necessariamente promover mudanças significativas no presente ou criar um impacto positivo em suas vidas atuais. É como se estivessem perpetuamente escavando suas lembranças em busca de respostas definitivas, mergulhando em um labirinto de reflexões que, paradoxalmente, pode afastá-las da ação concreta no momento presente.
Esse comportamento se assemelha a um arqueólogo obsessivo, constantemente escavando camadas e mais camadas de seu passado psicológico, na esperança de encontrar aquela peça final do quebra-cabeça que supostamente explicaria tudo. No entanto, raramente essas pessoas usam efetivamente essas descobertas para moldar seu futuro de maneira proativa e construtiva. Ficam tão absortas na análise que negligenciam a importância de aplicar os insights obtidos para criar mudanças tangíveis em suas vidas cotidianas.
Além disso, essa fixação excessiva no passado pode, paradoxalmente, impedir o verdadeiro crescimento pessoal. Ao invés de proporcionar libertação e evolução, esse foco intenso nas experiências passadas pode acabar mantendo o indivíduo preso a narrativas antigas e limitantes. Essas histórias, repetidas incessantemente, podem se tornar âncoras que impedem o movimento para frente, cristalizando padrões de pensamento e comportamento que não mais servem ao indivíduo no presente. Consequentemente, em vez de permitir a criação de novas histórias, possibilidades e futuros alternativos, essa abordagem pode inadvertidamente reforçar velhos padrões e crenças, dificultando a abertura para novas perspectivas e oportunidades de crescimento. Podendo, inclusive, aprofundar ou levar a algum adoecimento.
Conhecer é:
1. Ter conhecimento de.
2.Ter noção de, saber
conhecer. - Dicionário Online Priberam de Português Conhecer é saber. No caso do autoconhecimento, trata-se especificamente de saber descrever sua própria história. Contudo, é crucial entender que saber descrever não equivale diretamente a saber fazer. Uma pessoa pode, por exemplo, descrever minuciosamente todos os aspectos possíveis sobre andar de bicicleta sem jamais ter aprendido a pedalar. Da mesma forma, descrever exaustivamente as ações de um piloto de Fórmula 1, um jogador de futebol, um cozinheiro, arquiteto ou engenheiro jamais transformará alguém em um profissional dessas áreas.
Em um processo de "autoconhecimento", uma pessoa pode aprender a descrever todos os aspectos de sua vida do jeito mais "terapeutizado" possível. Ela pode detalhar os eventos, seus sentimentos, suas ações e reações, e os efeitos de cada peça nos infinitos jogos da vida. No entanto, ao final de todo esse processo, ela ainda pode se ver incapaz de determinar qual deveria ser seu próximo passo — sem nunca saber qual é o melhor movimento a se fazer na jogada seguinte.
O conhecimento descritivo é importante; seria um contrassenso um praticante da ciência afirmar que o conhecimento não tem valor. O desenvolvimento e acúmulo do conhecimento humano deu a possibilidade de um salto inimaginável no último século.
Contudo, mesmo com todo o conhecimento científico acumulado, ainda enfrentamos o problema "ser-deveria ser" de Hume. É extremamente difícil prescrever o que deveria ser a partir daquilo que é. Mesmo com todo o conhecimento do mundo disponível a todos, persistimos na dúvida sobre como usar esse conhecimento e em qual direção devemos seguir como sociedade.
O mesmo se aplica ao autoconhecimento. É evidente que, para viver, não é necessário saber descrever a própria história. Podemos afirmar, com considerável certeza, que apenas uma entre as possíveis bilhões de espécies que já existiram faz isso.
A sua vida não precisa de uma história, mas é bom que você tenha uma…
Assim como o conhecimento científico, o autoconhecimento pode ser uma ferramenta valiosa para aprofundar a compreensão de si mesmo e das nossas relações com a vida. Ele serve como um mapa, orientando-nos entre as possibilidades de mudanças necessárias.
Por exemplo, é bastante comum que pacientes agressivos (homens e mulheres) façam descrições de sua história que validem suas posturas agressivas.
Atenção: Agressão refere-se a qualquer ato que cause dano, dor, lesão ou prejuízo a outra pessoa.
Frequentemente, agressão é confundida com violência. A violência é uma forma de agressão física, enquanto agressão é um conceito mais abrangente que inclui agressões físicas, verbais, sociais, psicológicas, morais, entre outras.
Na minha profissão, provavelmente já ouvi todas as histórias possíveis que tentam justificar a violência contra outros adultos, crianças, animais, a sociedade, livros, ideias e qualquer outra coisa imaginável.
Traumas infantis, na vida adulta, doenças de entes queridos, desequilíbrios hormonais, níveis de testosterona, de serotonina, dopamina e qualquer outro neurotransmissor, ciclo menstrual, o barulho ou a falta de barulho, hierarquias sociais, obrigações pessoais, senso de dever contra injustiças, ideologias, diversos problemas de saúde, influências familiares. a mãe, o pai, tio ou vizinho, música, cultura... Enfim, qualquer justificativa imaginável, eu provavelmente já escutei.
Quer saber uma curiosidade? Eu acredito em todas essas justificativas. Isso ocorre tanto porque qualquer uma delas provavelmente é uma causa válida para agressividade, quanto porque a causa em si não faz a menor diferença na mudança necessária.
O que sabemos da pelo conhecimento em psicologia é que pessoas agressivas tendem no mínimo a:
- Dificuldades psicossocial;
- Baixo desempenho acadêmico;
- Abuso de substâncias (incluí álcool);
- Taxas mais altas de desemprego;
- Dificuldades nas relações profissionais;
- Relações conjugais mais precárias;
- Rnvolvimento em comportamentos criminosos;
- e tantas outras coisas…
Mas não somente, as pessoas que convivem com pessoas agressivas estão em risco para o desenvolvimento de:
- Transtornos de ansiedade;
- Baixa autoestima;
- Problemas relacionados ao estresse;
- e tantas outras coisas…
Isso é tão verdade quanto qualquer justificativa que uma pessoa agressiva possa dar. Agora falta decidir se porque a "vida me fez agressivo", é legítimo causar todo esse mal.
Contar infinitamente a história daquilo que criou a agressividade em alguém nunca vai mudar o fato de que essa agressividade causa mal, hoje, a própria pessoa e a quem está em volta dela. Também, não há história a ser contada que transforme uma pessoa que passou anos e anos se treinando em ser agressivo em uma pessoa “não agressiva”.
Conhecer a própria história pode nos ajudar a entender fatores importantes a serem trabalhados para um futuro melhor, pode aumentar a autocompaixão ao compreender os fatores moldam nossas ações diminuindo a percepção negativa de si, pode aumentar a nossa consciência dos porquês de algumas decisões que tomamos, e tantas outras coisas…
Em especial, aprender não apenas “a nossa história” - como uma narrativa única - mas as diversas histórias que envolvem a nossa vida, aceitando o bom e o mal do que fazemos e do que fazemos com os outros, pode nos ajudar a pedir ajuda de forma mais efetiva aqueles que querem nos ajudar.
Saber falar de si, sobre aquilo que você precisa, porque precisa e das suas limitações para lidar com uma circunstância aumenta consideravelmente as chances de receber ajuda positiva.
Ao falar de si, permitindo que os outros compreendam melhor de onde viemos e o que estamos buscando com nossas ações, outras pessoas tornam-se mais empáticas e mais sensíveis as nossas necessidades. Ao abrirmos nosso campo pessoal, por meio da fala, também abrimos um espaço de negociação para que outras pessoas com suas histórias possam ajudar melhor com o que tem disponíveis, seja com ações, ideia ou sugestões que não conseguiríamos perceber ou fazer sozinhos.
Infelizmente, como eu disse anteriormente, em muitos dos casos que eu conheci de pessoas agressivas, o autoconhecimento era usado para justificar o uso contínuo da agressão, para validar a necessidade e legitimidade do agir agressivo. Nesses casos, o agressor até pode conseguir alguma ajuda temporária, mas o prognóstico, como descrito acima, geralmente é negativo.
Na história do meu consultório, a grande maiorias das pessoas que fazem o mau, não são más, só não sabiam como pedir ajuda, que precisavam de ajuda, qual ajuda precisavam, às vezes, nem sabiam que existia ajuda possível. Com o tempo elas saem dessa espiral de destruição e se abrem para outros caminhos.
Conhecer a si mesmo tem um valor inestimável quando utilizado como instrumento para moldar seu futuro. Funciona como uma bússola em um mapa, indicando qual caminhos possíveis, cada um precisa escolher qual destino quer para si, e quais conjuntos e ações quer seguir para a pessoa que você quer se tornar no futuro.
No final do dia, mesmo o melhor autoconhecimento não é nada além de um livro de histórias. Como agir a partir desse conhecimento depende de cada um.
O próximo capítulo dessa história é muito mais decisivo para a vida do que ter conhecimento perfeito de qualquer evento do passado.