Texto do livro Manual de Processo Penal, Vicente Greco Filho, 9 edição.
"O DIREITO PENAL E O PROCESSUAL PENAL NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA. DIREITO PENAL DO INIMIGO E DIREITO PENAL DO CIDADÃO
Como já se expôs na descrição evolutiva acima exposta, o direito penal e o processual penal estão baseados em princípios advindos do Iluminismo, que representou uma reação ao autoritarismo e à arbitrariedade, consagrando formulações como a regra da legalidade, da anterioridade da lei penal, da tipicidade, da responsabilidade pessoal, da culpa individual, do contraditório processual penal, da ampla defesa, do devido processo legal, do direito de ficar calado etc. Como sempre tem explicado o Prof. Antonio Cândido de Mello e Souza, os movimentos culturais são pendulares, ou seja, de uma ideia que serve de leit motif, passa-se a outra oposta, que se acentua e se esgota, voltando o pêndulo para a ideia anterior, mas modificada porque a realidade mudou. Assim ocorreu na Filosofia, entre racionalismo e idealismo, na Literatura, entre o romantismo e o realismo, o mesmo ocorrendo com o direito. Após a Segunda Grande Guerra, vividos e superados nazismo, fascismo, stalinismo, revigorou-se a necessidade de declarações de direitos do homem, de garantias do indivíduo e das chamadas liberdades públicas. Com esse enfoque formulou-se, entre outras, a teoria do garantismo penal. Acontece que o mundo mudou, especialmente após o 11 de Setembro de 2001, quando vieram à tona de maneira quase incontrolável o terrorismo e a criminalidade organizada. Não é que esses fenômenos não existissem no passado, mas parece que afloraram como um desafio à sociedade e ao Estado regular e democrático. O direito penal em face dessa realidade revelou-se ineficaz e impotente, a ponto de se dizer que passou a ser meramente simbólico. Era inevitável que o pêndulo se dirigisse para o lado contrário, que se imaginasse um direito penal com garantias reduzidas para certo tipo de criminalidade e o que melhor representa essa tendência é o chamado “direito penal do inimigo”. Não é possível tratar do tema direito penal do inimigo sem partir de Günther Jakobs e do pensamento contraposto de Manuel Cancio Meliá[41]. A questão gira em torno da dicotomia direito penal do cidadão – direito penal do inimigo, conceitos que dificilmente serão transladados à realidade de modo puro, e que convivem em um mesmo contexto jurídico-penal, já que o agente de um ato terrorista, que é o sujeito tido como “o mais afastado da esfera de cidadão”, possui o mesmo tratamento “de pessoa”, concedido pelo processo penal. Günther Jakobs parte de filósofos contratualistas, no conceito de que “qualquer pena” e “qualquer legítima defesa” se dirigem contra um inimigo (Rousseau, Fitche, Hobbes e Kant fundamentam o Estado em um contrato: quem o não cumprir, está cometendo um delito e, por conseguinte, não participa mais dos seus benefícios). A partir desse momento o infrator não mais está em conformidade com aqueles que naquela relação jurídica permanecem, os cidadãos (Rousseau: malfeitor que ataca o direito social está em guerra com este – deixa de ser membro do Estado). O cidadão, porém, não se transforma em inimigo pela prática de um crime eventual, impulsivo, ocasional, circunscrito a determinadas condições fáticas. O inimigo é o criminoso que rejeita a ordem jurídico-social e que quer impor sua conduta como outra estrutura de poder. A questão, então, gira em torno de uma dicotomia: o criminoso cidadão e o criminoso inimigo, daí devendo se configurar um direito penal com duas faces, a do Cidadão e a do Inimigo, ou para o Cidadão e para o Inimigo. Esses conceitos dificilmente podem ser transladados para a realidade de modo puro, visto que convivem em um mesmo contexto jurídico-penal, já que o agente de um ato terrorista, que é o sujeito tido como “o mais afastado da esfera de cidadão”, na atualidade possui o mesmo tratamento “de pessoa”, concedido pelo processo penal.
Os dois polos, encontrando-se dentro de um único contexto jurídico-penal, não se contrapõem em duas esferas isoladas do direito penal (direito penal do inimigo – direito penal do cidadão), mas são “dois polos de um só mundo”, sendo possível que essas tendências se sobreponham, uma que oculte o autor como pessoa e a outra que o trate como fonte inimiga ou meio de intimidação. O direito penal do inimigo não pretende ser sempre pejorativo, pois é indicativo de uma pacificação insuficiente, referindo-se tanto aos pacificadores quanto aos rebeldes. O direito penal do inimigo é desenvolvido com base em condutas que são praticadas segundo regras extraestatais e não originadas de uma conduta espontânea e impulsiva (direito penal do cidadão). Ao inimigo aplicar-se-iam, entre outras, algumas das seguintes medidas: não é punido com pena, mas com medida de segurança; é punido conforme sua periculosidade e não culpabilidade, no estágio prévio ao ato preparatório; a punição não considera o passado, mas o futuro e suas garantias sociais; para ele o direito penal é prospectivo ou de probabilidade; não é sujeito de direitos, mas de coação como impedimento à prática de delitos; para o inimigo haverá a redução de garantias como o sigilo telefônico, o ônus da prova, o direito de ficar calado, o processo penal em liberdade e outras garantias processuais.
Assim, o direito penal do cidadão tem por finalidade assegurar a manutenção das normas do sistema vigente, enquanto o direito penal do inimigo combate (guerra) preponderantemente o perigo. O direito penal do inimigo deve antecipar a tutela penal para alcançar os atos preparatórios, mesmo sendo a pena intensa e desproporcional. Para o cidadão, a coação somente deve ser iniciada com privação da liberdade se houver a exteriorização de um ato que a exija como necessária.
O direito penal do inimigo apresenta, evidentemente, objeções muito sérias, como expostas por Cancio Meliá, resumidamente: compara-se ao direito penal do autor (nazismo – contradição em si mesmo, não é “direito”); presente em muitas legislações penais mediante incriminações discriminatórias ou preconceituosas, que devem ser eliminadas e não ampliadas; não reprova a culpabilidade, mas a periculosidade (pena e medida de segurança deixam de ser realidades distintas); é direito penal prospectivo devido à periculosidade; gera penas desproporcionais devido à periculosidade; procedimento é de guerra quando não é essa a situação; não há garantias penais e processuais (imposição de prisão e até a morte); legislador é punitivista e simbólico; direito penal do inimigo tem origem na aliança entre a esquerda punitiva e a direita repressiva; direito penal do inimigo é inconstitucional e ele sim é uma manifestação delituosa pela inconstitucionalidade das suas características. E, também, a maior objeção: quem é o inimigo? Quem decide a colocação de alguém na qualidade de cidadão ou de inimigo?
A realidade mundial, porém, registra o seguinte: no plano legislativo já existem manifestações do direito penal do inimigo, como o patrotic act norte-americano, a legislação inglesa contra o terrorismo e, entre nós, a “Lei do Abate”; no plano fático têm sido utilizadas as suas práticas como interceptações telefônicas não autorizadas, mandados de busca indeterminados ou genéricos e, até, mandados de prisão genéricos. É possível concluir que, de fato, o direito penal e o direito processual comuns mostram-se ineficientes diante de certas formas de criminalidade, como o terrorismo, o tráfico internacional de drogas e as organizações criminosas, de modo que a reação do Estado deve ser revista. Mas resta a irrespondível questão: como e com quais medidas?"