OS CORPOS ENFORCADOS.
Quando o investigador particular Custódio Francês entrou na sala da grande casa daquele casal imensamente rico. A cena mexeu com ele.
Pendurados pelo pescoço. Cada um com uma corda amarrada na grade do mezanino pendiam mortos.
Custódio Francês, uma hora antes entrou em sua casa. Morava somente com a esposa Laura e a companhia do querido labrador preto, o Bacana. Não tiveram filhos.
Assim que abriu a porta o cão aproximou-se, Custódio sorriu quando ele balançou o rabo, retribuiu a recepção com um afago. Laura dormia.
Os tempos estavam mornos, poucos casos. Seus clientes eram os advogados, estes que o contratavam. Metade eram casos conjugais, outro tanto societários. Alguns lhe vinham pelos criminalistas, até nem gostava muito destes, criminalistas pagam pouco.
Custódio tirou a roupa, entrou embaixo no chuveiro, tomou banho, bom banho, saiu, olhou-se no espelho. Viu que seus cabelos embranquecidos precisavam dum corte. Orelhas, não podia evitá-las, mesmo assim, mantinham seu charme apoiados nos hipnóticos olhos azuis. Deu dois tapas no próprio rosto, poucas rugas. Olhou seu corpo, a barriga estava ali, ainda discreta. Não adiaria mais as caminhadas com Laura, programaram recomeçá-las na manhã deste domingo. Olhou o relógio, tinha um no banheiro, duas horas da manhã, aproveitaria as próximas cinco para um bom sono. Enxugou-se e deitou nu.
Abraçou a amada, passou a mão entre as coxas da sua Laura, arrepiou-a, ela soltou um gemido baixinho. Já conheceria próximos passos e a opção dela. Se ela se virasse para o seu lado saberia que teriam alguma festa gostosa, ao contrário, se ela pegasse sua mão, levasse próxima da boca e a beijasse, então, nada feito. E foi o que Laura fez, também, puxou ainda mais a coberta, encolheu-se e permaneceu no seu sono profundo.
Custódio acendeu o abajur, pegou as revistas da semana, escolheu uma delas e a folheou, ajudava a pegar no sono. Interessou-se pela situação internacional, "Criméia..." - começou a ler a confusão, mas não deu tempo de passar do primeiro parágrafo, ouviu o soar do celular ao mesmo tempo o latido do Bacana, que não gostou de que o acordassem. Laura não fez nenhum movimento.
- Boa noite, é o Senhor Custódio Francês? - escutou do outro lado da linha uma voz grave, de alguém com mais de 70 anos, voz acelerada e estressada, algo acontecera, concluiu.
- Boa noite, sim, sou eu nesta madrugada, senhor....
- Meu nome é Reinado Azevedo Mota Cavalcanti, sou advogado - Custódio conhecia a figura, um grande bem relacionado.
- Pois não, Dr Reinaldo, pelo adiantado da hora concluo que quer meus préstimos com certa urgência.
- Sim, Sr Custódio. Encontraram meu cliente Frank Heinz Strauswald morto em sua casa, juntamente, com sua esposa, Berta Strauswald. Ainda não chamamos a polícia, compreenderá o motivo quando visitar a cena do crime.
- Há quanto tempo os encontraram? - Custódio já colhia as informações da cena do crime.
- Vinte e cinco minutos.
- E em tão pouco tempo concluíram pela minha ajuda? - Custódio perguntou curioso.
- As últimas palavras do meu cliente foram ditas aos gritos: " salve-os, Custódio, salve-os!" Vimos pelo som e imagem do sistema de segurança.
- Aonde se encontram? - Custódio já passara inúmeras vezes pela mansão dos Strauswald, mesmo assim quis se certificar do endereço.
- Jardim das Jabuticabas, casa 2. Por favor, venha o mais rápido possível - pede o advogado.
- Em 20 minutos estarei por aí.
Custódio chegou na casa dos Strauswald às três horas da madrugada. O portão externo estava aberto, a casa toda escura. Era uma residência imponente com mais de mil metros quadrados. Estilo moderno, como se fossem cubos montados um sobre o outro. Muito vidro, toda branca, grandes blindex. O jardim bem cuidado, florido. Ele sempre achou estranho aquela arquitetura, alemães idosos gostam de residências estilo axaimel - estrutura em madeira preenchidas por tijolos - e seus telhados bem inclinados. Mas esta não era assim.
Estacionou seu carro, Mercedes Benz, dava-se este luxo. Desceu e enxergou um senhor ao pé da porta, reconheceu-o, era o advogado Reinado Mota Azevedo Cavalcanti, não mais de 50 anos, muito elegante, lenço combinando com a gravata, cabelos pretos bem cortados e penteados, camisa branca impecável, terno de risco de giz. Cumprimentaram-se apenas com o gesto de cabeça, o advogado abriu passagem, Custódio entrou e avistou os dois corpos pendurados.
Choravam num canto um casal de serviçais, ainda de pijamas. Negros idosos, com certeza nada tiveram com aquilo, não teriam forças para praticar o crime.
- Eles que acharam os corpos? - perguntou Custódio.
- Sim, o casal chama-se Dona Nanda, a cozinheira. O marido é o faz-tudo, Seu Bernardo, trabalham com o casal a mais de 30 anos. Tinham instruções que quaisquer emergências deveriam ligar para mim, moro duas casas distante, acabava de chegar em casa.
Custódio pediu que ambos fossem para a cozinha e ficassem por lá.
- Quer ver o momento do crime? - pergunta o advogado.
- Sim, é bom - aceita Custódio.
Com dois toques num controle remoto apareceu na televisão a imagem bem enquadrada do casal se debatendo, pendurados. Dona Berta já imóvel enquanto o Sr Frank, agonizava aos gritos sufocados, ainda pronunciou:
- Salve-os, Custódio, salve-os! - alguns segundos e silenciou.
- Por favor, poderia me passar o controle? - pediu Custódio - o advogado levou-o até sua mão.
- Gostaria de ficar sozinho por alguns instantes. Peço que fique junto com o casal de serviçais na cozinha - ordenou Custódio.
Já sozinho na sala, ele andou até embaixo do homem enforcado. Custódio tinha exatos 1,80m e os pés do corpo que pendia roçavam sua cabeça, portanto, exatos 1,80m do chão. Olhou pra cima, Sr Frank era um homem alto, provavelmente, uns cinco centímetros maior que ele próprio, então, 3,65m do chão. Sua cabeça estava pouco abaixo da laje do mezanino que tinha uns vinte centímetros, calculou mais cinco, tinha 3,90m até emparelhar com o piso do mezanino. Ele subiu as escadas. A corda estava amarrada na grade do peitoril que tinha altura de sua cintura, sabia ser de 1,20m. Portanto, do chão até o nó eram cinco metros e dez centímetros.
Olhou em volta no mezanino. Este tinha uns dez metros de comprimento por três de largura. Só uma mesa encostada na parede entre duas portas da entrada aos quartos. Sobre a mesa algumas cartas, pastas com documentos, chaves e celulares.
Olhou o nó feito na grade, alguém o fez e este não era um especialista em nós comuns aos navegadores, escoteiros, caminhoneiros. Quem executou aquilo dera cinco voltas na grade e três nós cegos para que não cedessem, o suficiente pelo pouco peso do casal dos idosos. O que o intrigou: ambos os corpos estavam a exatos 1,80 metros do chão. Concluiu com facilidade porque o pedaço da corda que suportava o corpo do Sr Frank era menor que da sua esposa, pois a mulher era de menor estatura. Portanto, os quatro pés estavam, igualmente, distantes do chão.
Por ora, era só o que tinha, ambos pendurados exatamente a um metro e oitenta centímetros do chão.
Custódio parou seu olhar no espelho, viu-se, ar cansado. Rodou os olhos por toda a sala, tudo estava no lugar, nada de estranho. A sala tinha os móveis estilo moderno, sofás em napa branca, muitas almofadas bem coloridas, mais para o amarelo e preto, cores da bandeira alemã - supôs Custódio. Sobre o assoalho um grosso tapete que tornava macio o andar. No centro, uma mesa pequena com alguns livros grossos do artesanato germânico. Na lateral da sala, com destaque, uma mesa com muitos porta-retratos. O investigador se aproximou dela, olhou todos, depois passou a procura de marca, quem sabe alguém retirara um dos porta-retratos e o pó marcou o local, mas nada de estranho, todos estavam lá.
Custódio coçou a cabeça, não seria fácil resolver este crime. E por estar tudo tão certo passou a pensar o contráio. E começou de novo sua observação, começou por apertar os pés dos dois mortos, ainda macios.
Analisou todas as hipóteses possíveis. Fazia isto enquanto revia o filme por várias vezes: "salve-os, Custódio, salve-os!". Vaidoso, gostou de escutar seu nome sendo pronunciado por tão importante empresário. Não estranhou porque era comum realizar trabalhos neste meio.
Suicídio descartou porque teriam que subir num banquinho e depois pulassem através da grade do peitoril. Também, caso se matassem, estariam, ambos, emocionalmente, tão instáveis que não seria impossível as cordas serem de tamanho suficiente e na exata medida para que ambos pendessem a um metro e oitenta centímetros do chão.
O investigador fechou os olhos. Tirou os sapatos, queria senti-los massageados pelo grosso tapete de altos pelos. Muito bom, achou, colocou, novamente, os sapatos.
- Dr Reinaldo? - chamou-o assim que abriu a porta que dava até a cozinha.
Dr Reinaldo entrou na sala.
- Por favor, pode chamar a polícia? - pediu o investigador Custódio.
- Conseguiu descobrir que fez esta barbaridade? - perguntou o advogado.
- Sim, foi o senhor, é claro.
- Eu? Qual seria a minha motivação? Nem estive aqui nas últimas horas. E este casal eram como pais para mim.
- Acredito que gostava muito deles, tanto a ponto de dar cabo da vida deles. O senhor os matou a menos de uma hora e meia. Não há rigidez corpórea, ainda.
- E por que eu faria isto? É difícil camuflar uma morte destas.
- Pela sua vaidade, senhor, também, atingiu um status que se acha um deus, pensa que poderia camuflar, mesmo assim, precisava de confirmação.
- Deus, eu? Por que concluí isto?
- O senhor me chamou porque queria se certificar que um investigador com a minha experiência não encontraria nada de estranho que o incriminasse. Mas cometeu muitos erros.
- Erros? Mas do que você me acusa? - disse em tom irônico o advogado Reinado.
- O tamanho das cordas que seguraram os corpos o traíram.
- As cordas?
- Sim, tamanhos diferentes para que deixassem os corpos exatos um metro e oitenta do chão para que, assim, a câmera de vídeo enquadrasse perfeitamente os corpos.
- E isto comprova que fui eu? Qualquer um poderia fazer isto. Você está louco.
- Não, era preciso enquadrar a cena, fez questão de me mostrar o vídeo com imagens perfeitas, doutor. Mas há outros fatos, por exemplo, os porta-retratos, não faltava nenhum deles.
- O que eles têm que me incriminam?
- Só há fotos de personalidades conhecidas, sei que nenhuma delas é parente das vítimas. Provavelmente, não tem parentes. Sei que os Strauswald não tem filhos, portanto, nem herdeiros, certo? A não ser que como advogado deles fez arranjos para herdar os bens do casal.
Nisto Dr Reinaldo sacou de uma pistola e apontou à cabeça do investigador com um sorriso.
- Esqueça disto, Dr Reinaldo. Minha morte não o salvará. A esta altura o casal de serviçais já fugiu e chamou a polícia, suponho que pretendia pendurá-los, também. Quando eu os vi vestidos ainda de pijamas percebi que foram acordados às pressas, entretanto, empregados de patrões alemães nunca chegariam assim na sala principal. O senhor os retirou, rapidamente, da cama.
- Isto é suposição sua - diz o advogado com a arma quase encostada na cabeça do investigador.
- Não, não é. Eles foram fiéis a vida toda aos patrões. O último grito do Sr Frank foi: "salve-os, Custódio, salve-os."
- E por que o Sr Frank disse o seu nome? - falou com sarcasmo o criminalista.
- Ora, provavelmente, porque o senhor lhes revelou da minha existência. Enquanto os amarrava e primeiro jogou abaixo a Sra Berta, sadicamente, às vistas do marido, revelou como se safaria desta. E que me chamaria para confirmar que nada o incriminaria. Se eu descobrisse alguma coisas, corrigiria a cena do crime, com tudo perfeito, chamaria a polícia e forjaria o quádruplo suicídio.
- Senhor Custódio, o senhor é adivinho, é? Porque alega que eu forjaria tudo através de suicídio.
- Sr Reinado, o senhor arrastou a única mesa que existe no mezanino para perto da grade, o que faria depois. Vi que tudo estava bem arrumado sobre a mesa, chaves, celulares, pastas de documentos, assim mesmo que estes idosos alemães fazem, rotineiramente. Entretanto, cometeu um erro. Olhe para cima - disse o investigado - o senhor a colocou novamente no lugar, apenas não fez com precisão e a deixou levemente torta. Observe daqui debaixo, mesmo. Faça uma relação da sua visão em relação à grade. Note que a ponta do lado esquerdo da mesa se vê por cima da grade enquanto o lado direito se vê por baixo. Esta é uma casa de alemães, não deixariam as coisas fora do lugar.
O advogado olhou incrédulo ao investigador, não acreditava que cometera este erro tão banal. Sim, isto poderia incriminá-lo. Com olhar de dúvida, lentamente, agora com a pistola ainda mais perto da cabeça do investigador, virou sua cabeça um pouco e olhou pra cima para certificar-se da constatação do investigador. Mas o que viu foi a mentira dele, a mesa estava colocada corretamente no lugar. Ao se virar raivoso pela enganação sentiu a pancada na cabeça.
O investigador atirou o controle remoto com bastante força, o advogado instintivamente puxou o gatilho, a bala passou milímetros da mão direita do investigador no instante que tentava agarrar a pistola para desviar a linha do tiro da sua cabeça, por sorte nada aconteceu, por parte, teve sucesso. Mais dois tiros foram disparados, estes para cima que acertaram o teto. O investigador aplicou-lhe uma rasteira, o advogado caiu no chão, Custódio também se agachou, mas com outra intenção, a de esticar a mão esquerda para alcançar um dos livros sobre a mesa de centro, apanhou e atirou em direção a cabeça do advogado que tombou com a forte pancada. Desfaleceu.
Meses depois abriram o testamento do casal Frank e Berta Struswald. E encontraram o motivo. Determinaram que todo o patrimônio, em caso da falta deles por motivo trágico, deveria ser destinado à fundação de amparo aos jovens drogados. O presidente desta instituição seria o advogado Reinado Azevedo Mota Cavalcanti. A ganância subiu-lhe à mente.
O fiel escudeiro era um irritado com a perfeição do casal. Tornou-se um perfeccionista para o mal. Planejou o crime e antes da chegada da polícia teria o parecer do investigador para se certificar se executou o crime perfeito. Se nada encontrassem, ainda teria a polícia científica que um comparsa garantia a conclusão de suicídio.
Naquela noite, depois de trabalhar duas horas sem receber nada em troca, mortos não pagam, Custódio deitou-se às seis horas da manhã. Ao lado a sua Laura, ainda, dormia. Isto por mais uma hora quando ela acordou, virou-se para ele e soprou em seu ouvido.
- Meu amor, pensa que dormirá até mais tarde só por que hoje é domingo, é? Acorde, vamos andar juntos.