CARNE DE PACA É BOA PACAS!!
Convidaram-me para degustar carne de paca. Recordei-me que em União da Vitória meu Tio Egon gostava de cozinhar bom ensopado com carne de paca. Desta vez, era na grelha, acompanhava cachaça Rainha da Paraíba e cervejinhas.
Sentamo-nos ao redor do fogo para aguardar a "saborosa". Não sei a origem da caça, parece-me que em fazenda do Mato Grosso.
Observava-os.
Esse pessoal que me convidou tem o desejo de comer carnes exóticas. Certa vez, sem nada em especial para o jantar, a não ser a vontade de se reunirem à mesa compraram um bode. Adquirido o caprino, tão grande como bezerro, admiram-no por algum tempo como se estivessem em alguma exposição.
Tomaram umas talagadas para esperar a chegada da coragem, por conseguinte, a hora de matar o bode.
O problema é que advogado, engenheiro, professor, gente que é criada urbana não sabe como se mata um bode. "Ora, pra isto tem o google" - falou um. E foi o que fizeram, pesquisa no mestre google.
E cheios de conhecimento sentaram-se ao redor do bode, acariciavam-no e informaram que chegara a hora.
O bode era forte, casca grossa, esta notícia não o surpreendeu, permaneceu quieto e impassível, cabeça empinada, não se rebaixou.
Os futuros comensais da carne do bode arrastaram o "macho-véio" até perto da churrasqueira - como se ao ser morto ele já pudessem colocar a carne no braseiro.
Escolheram o carrasco-mór, o vencedor desgraçou a infeliz função, contudo, cumpriria.
Pegou o porrete enquanto os outros quatro seguraram o bicho. Levantou o pesado pau acima da sua própria cabeça e desceu-o com a força acompanhada do poder da "dó", um freio de mão puxado.
Deu uma meia-cacetada na cabeça do bode que grogue estremeceu, caiu, levantou de novo. O porreador,já
pê da vida com tanta gozação dos companheiros deu mais duas, três, quatro, cinco porradas com a força de dá dó.
E como com dó ninguém mata ninguém o bode ficou zonzo e vivo.
Outro comensal sugeriu o método alternativo, o de dar uma facada que pegasse no coração. Sim, ótima ideia, mas aonde é o coração do bode? Não sabiam e a cachaça paraibana os impedia de teclarem o computador em busca da informação. Foi no palpite.
Com uma faca pontuda e bem afiada o segundo carrasco enfiou-a bem fundo até o cabo, ele sentiu que batera em alguma coisa - talvez uma costela, supôs um - então, ele torceu a faca e a lâmina partiu.
Primeiro se ouviu um gemido, seguiu-se o repetitivo berro assustador da agonia do bode. Quando o sangue do bode esguichou o terror fez com que o soltassem e ele correu solto pela casa igual balão de aniversário que quando se enche e escapa das mãos voa maluco a se debater pelas paredes até cair vazio e desfalecido num canto.
Pois o bode fez igual, só que pintou um rastro doido e vermelho por toda a casa. Parou num canto. O carrasco do porrete gritou de horror e correu pelo jardim, escondeu-se dentro do primeiro carro que viu e aguardou por lá até que se comprovasse que, finalmente, o bode morrera.
Devagarinho todos se aproximaram, praticamente, ajoelharam-se em silêncio e, como por encanto, ficaram com vontade de tocar no bode, quente e ensanguentado. Até o fujão pro carro juntou-se aos demais.
O bode ao ser tocado deu uma estrumbicada, chacoalhou-se vingativo. Os cinco carrascos correrem cada um prum lado.
O carrasco do porrete, o fujão, retornou pro carro, levantou os vidros, travou a porta, deitou-se sobre o banco. Dois deles se fecharam no banheiro, outro correu pra dentro do quarto e se escondeu atrás do berço que dormia sua filhinha. O último pediu ajuda ao caseiro: "aquele bodâo está morto e vive! Me ajuda, por favor"! O caseiro, cabra-da-peste, corajoso que só, abriu a porta, o carrasco pulou pra dentro da casa e o criado mais que depressa trancou a porta. Contou depois que não acredita em fantasmas, mas também não é besta!
Finalmente, cansado de viver tantas mortes o bode morreu.
Os cinco, já de posse das instruções retiradas da internet, abriram o peito do bode, retiraram suas tripas pra buchada, o fígado e outros órgãos reservou-se ao sarapatel. Cortaram a cabeça do bode, guardaram pra quem quisesse, esfolaram-no, tiraram o couro, então, procuraram a glândula crural dentro fêmur que faz feder a carne e a retiraram fora.
Enquanto escorria o sangue do bode numa vasilha os seis olhavam pra ele que esticaram sobre uma mesa, digo melhor, cinco homens mais a cabeça do bode pousada ao lado com olhos arregalados como se o bichano participasse do próprio esquartejamento.
Conjecturavam em quantas cabras o bode montou pela vida, por onde viveu, estas coisas ditas em velório.
Um dos carrascos concluiu que o bode nasceu pra morrer em benefício da raça humana.
Outro filosofou que só maior que o sofrimento do bode foi o dele próprio ao participar do abate do caprino. Pior, agora, conviveria com a culpa se a falta de prática o tornou um assassino.
Mais um, investidor em bolsa de valores, contemporizou: "bode morto é proteína animal, assisti no Globo Rural, é proteína animal pra lá, proteína animal pra cá, é agronegócios com ações em bolsa".
O bom preparo iniciou-se com as especiarias, sal a gosto, fatias de mamão. Tempo depois, não o suficiente, colocaram o bode para assar no braseiro alimentado por briquetes de eucaliptos perfumados.
Finalmente, o jantar.
Ao chegar o primeiro convidado o grito foi ensurdecedor. O desavisado escorregou no rastro vermelho do bode que se esqueceram de limpar e quase se esborracha no chão junto com a garrafa de vinho chileno, apropriado para churrasco de bode.
Providenciou-se balde com água, esfregão e sabão. Fez-se tão boa limpeza que nem a polícia científica encontraria sob luzes negras especiais vestígios do fato acontecido.
Os convidados chegavam, o aroma animava, menos aos cinco carrascos. Um deles se penitenciava: "por que fui olhar nos olhos do bode"?
Os primeiros que enfrentaram a carne do bode mastigavam com dificuldade. Dura demais!
- Provavelmente, o bode contraiu os nervos diante da desgraça mais que pouca, sei lá, acho que foi isto - disse um
Os anfitriões encaminhavam os convivas à força ao carnaval - a festa da carne - sem muito sucesso. Havia algo estranho no ar "é o espirito dele" - supôs o carrasco-mor.
Resolvidos a animar o ambiente os cinco carrascos tomaram à frente do buffet e encheram seus pratos com muito feijão tropeiro, couve, batata cozida, mais feijão tropeiro, mais batata e arroz. Num cantinho do prato pousavam um minúsculo pedacinho da carne do bode.
Meia-noite mais ninguém na casa. Desfez-se a mesa, quase todo o bode pro freezer.
Dia seguinte os caseiros da vizinhança comeram bode, sarapatel, tudo de muito!
E eu esperava a paca.
Pois quando chegou esfumaçada nesta noite fria comemos a paca de lambuzar os beiços.
Diga-se que ninguém quis ver a paca. Um dos pré-históricos comensais até que quis provocar nossa curiosidade:
-Tirei uma foto do rostinho dela, os dentinhos aparecendo. Querem ver?
Uníssonos:
- NÂO! DEIXE ESTA PACA EM PAZ!