Cheguei em Fortaleza às 23:30. Morto de fome. Pergunto ao recepcionista da simples pousada que me hospedo se "há algo aberto, ainda"? Sim, havia no outro lado da rua uma lanchonete.
Arrasto-me ao apartamento, deixo a mala, atravesso a rua, sento-me em frente da TV, passava o maravilhoso Madagascar I.
- Boa noite, o cardápio, por favor.
O garçom traz e escolho um X-Tudo. Tudo mesmo, do presunto ao bacon, do queijo ao ovo, do pão à salada e mais outros penduricalhos bem aceitos com coca.
Concentrei-me no filme, era o momento que os bichos fogem do zoológico. Meu pedido demorava, mas o filme é bom demais, não me importei.
- Senhor, fechamos em cinco minutos - diz o garçom.
- Sim, está bem, mas cadê meu X-Tudo?
- O senhor não pediu - ele diz.
- Como não pedi? X-Tudo com coca light.
O garçom chama a gerente que contemporiza, fariam o sanduíche. Logo veio.
- Quanto é? - pergunto.
- O senhor já pagou - fala o garçom - foram 12 reais, dei-lhe o troco.
- Paguei?
Na dúvida abri a carteira e tinha uma nota de R$50, outra de R$20, mais uma de R$10 e quatro de R$2. R$88 no total.
Tá bom, despedi-me, voltei à pousada, na TV passava o Jornal da Globo com os últimos presos políticos, gente da melhor qualidade. Coloquei o sanduíche sobre o balcão da recepção, sentei-me em frente da TV e me concentrei nos nomes, volta e meia surge algum que cruzei pela vida, desta lista ninguém.
Dez minutos e olho pro balcão, sumiu o sanduíche. O porteiro e o vigia mastigavam felizes, cada um com seu copo descartável, escuro por fora, é a minha coca.
- Cadê o meu sanduíche? - intervenho na comilança - por acaso comem o meu sanduíche?
- Mas não era pra nós? - diz o porteiro Vinícius - o senhor me desculpe, pensei que trouxe pra gente.
Explico.
Sou cliente desta pousada há vários anos. Saio pra jantar e retorno com meia pizza ou um bom pedaço de filé mingnon que foi demais para mim. Nessas noites cansado, peço a chave e sem nenhuma palavra a mais do que "boa noite" sigo pro meu quarto. É um ritual.
Pensaram que o sanduíche fazia parte desta rotina.
Desculpei-os, acontece, fui pro quarto com baita fome, dormi, nem lembro de tirar a roupa.
Pela manhã, tomava meu matinal no salão e se aproxima de mim o gerente André.
- Bom dia, como vai o meu amigo? - André é um daqueles gerentes com o dom da felicidade. É uma satisfação conversar com ele.
- Opa, tudo bem, bom dia - e me adianto - olha,André, se veio se desculpar por ontem à noite com o Vinícius, esquece, acontece.
Ele deu de ombros como se não soubesse de nada. Falamos do tempo chuvoso, dos novos presos, do Trump, Neymar, etc... até que o André disse por que veio ao meu encontro.
- Chegou a nota da lanchonete da frente, são R$12. O senhor quer colocar na conta ou me paga em dinheiro? Se for pra conta terei que acrescentar os impostos e mais 10% do serviço.
- Como assim? O sanduíche de ontem eu já paguei. Olha aqui minha carteira - retirei-a do bolso e abri - quanto eu tenho de dinheiro?
A contragosto ele olha e diz - O senhor tem R$100. Duas notas de cinquenta.
Eu olhei e vi duas notas de cinquenta. Mas como pode?
Pedi-lhe desculpas.
- Não se preocupe, quando o senhor sair, passa na recepção que lhe darei o troco.
Assim que ele se afastou eu me levantei e fui possesso na lanchonete. Abriam, ainda. Tinha um único atendente.
- Olha aqui, ontem à noite eu vim aqui, pedi um X-Tudo com coca, paguei....
Ele me interrompeu.
- Doutô, ontem à noite? O senhor se enganou, ontem, segunda, nós não abrimos. O senhor deve ter ido em outra casa.
Olhei pra ele que me fitava como se eu fosse, digamos, um daqueles que faz 88 daytrades por dia - já fui um desses - também firmei o olhar por alguns instantes, percebi que o rapaz estava com um pouco de medo de mim, achei melhor ir embora e fui direto pra falar com o gerente André.
- Oh, André, você pode receber os R$12, agora? - falo com rispidez, era pra provocar mesmo.
- R$12? Referente a que? - pergunta surpreso.
- A que? A cobrança do sanduíche que me fez no salão do café, há nem dez minutos.
- Eu? O senhor está enganado. Eu não estive com o senhor no café. Até vi quando o senhor saiu do quarto, passou direto por mim muito apressado e foi até a lanchonete em frente.
- Você não foi ao salão falar comigo amenidades, do Trump? Você até olhou quanto de dinheiro eu tinha na minha carteira...
- Desculpe-me, eu nunca olharia sua carteira. O senhor está um pouco nervoso, aliás, ficará mais ainda porque acaba de fechar o salão do café.
Eu não acreditei no que se passava comigo.Desisti, afastei-me.
Sentei-me em frente da televisão, olhei o "invisível" X-Tudo que o Vinícius comera com o guardião...rememorei cada instante desde que cheguei na pousada.
Na TV a Ana Maria Braga terminava de preparar a "vaca atolada à moda de Braga", Portugal. Tão deliciosa que me ocorreu de almoçar num restaurante português que conheço, mas é longe de Fortaleza, fica em Curitiba.
Perdi a janta de ontem e o café da manhã - penso - "melhor levantar porque está quase na hora de abrir o pregão, vejo as cotações, nada de daytrade, vou é atrás da vaca atolada, de Braga".