Saí numa terça de Brasília em direção a Jericoacoara. 2295 km, vim de carro com a família, pela Transpiauiense.
O caminho é o mesmo de outras vezes. Direto até nos hospedarmos em Barreiras, BA. Depois Floriano, PI, Teresina, Camocim,CE e chegamos.
Paro nos mesmos postos para abastecer, café, almoço e janta, na parada em Correntes é sempre na mesma padaria.
Mas desta vez foi diferente.
Antes da Parnaíba chove, torrencialmente. Não enxergava nada. De repente a pista sumiu, vira uma lagoa. Meu carro perde a aderência, nenhum problema porque eu estava a 20km/h.
Entro num posto de gasolina, um motorista que se abrigava me sugere o Piracuruca Hotel, pertinho, na estrada.
Entramos, o porteiro pede a identidade dos meus filhos, fez certo. Assistimos ao jogo, chuveiro bom, todos no mesmo quarto, 3 camas para quatro, uma rede para três. Isso mesmo, tirante eu mesmo, os outros três brigam pela rede, sobrou interesse na cama, acertam-se depois que disse que enquanto brigavam eu comeria os pastéis comprados na estrada. Comi dois, deliciosos. Dia seguinte o ronco na barriga me fez sentir que o pecado capital da gula é terrível.
Volto à noite. Dormimos depois do jogo que Neymar arrebentou o Uruguai. Noite tranquila, saio do quarto bem cedo e soube que o café não era no corpo do hotel, "é numa padaria ao lado, tem pão quentinho" - diz a moça da portaria, verdade, delícia. De companhia os vendedores das estradas, sabem de cada buraco. Avisam-me dos trechos ruins.
Minha senhoura chega para o matinal com a minha filha, aproveito, aviso que pagarei a conta, entro no carro, a luz do catalizador apagou, devia ser água nas velas, a família chega, acomodam-se, aviso-os que faltam 270 km - "não briguem, brigaram toda a cota" - convenço-os a chegar numa boa até em casa. Rodo 10 quilômetros e já escusto, "tá olhando o que"? - era o meu filho pra irmã, sempre mal-humorado pela manhã, um verdadeiro bastteriano. Se não fosse a chuva já estaríamos em nossa casa -penso alto.
Passo por Parnaíba, Chaval e Barroquinha, cruzo Granja, distrito do Parazinho, entro na estrada do Rio Pesqueiro, somente mais 16 km e estarei em casa. Chegamos.
Eu com sono, muito sono, caio na cama, acordo 10 horas depois, dormi mesmo, muito mesmo.
Ao ligar meu celular a mensagem do meu amigo Ugo: "qual a estatística"?
Parei pra fazer meus cálculos.
Com o carro em movimento fiz média de 72 km/h.
Considerando as paradas para lanche, verter água e abastecer foram 42 km/h.
E se fiz de ponta a ponta em 79 horas, resultou em 29 km/h.
Importante salientar que não atendo o celular, não ligo o rádio do carro e para não dormir ao volante comecei em Brasília a narrar uma estória aos meus filhos que terminei somente na minha chegada. A trama era sobre a justificativa aos filhos da minha retirada da vida pagã e a reclusão num mosteiro de isolamento vitalício.
Não sei porquê veio-me essa vontade durante a viagem, "adorei" - diz minha senhoura - "o conto, não essa ideia maluca" - justifica. Fiquei com a pulga atrás da orelha.
E a ideia veio quando da saída da nossa casa em Brasília.
Eu pensei assim: já que será minha última viagem antes da reclusão, vou bem devagar aproveitando todo o trajeto.
Este devagar foi em semelhança a atitude do meu filho quando lhe dou R$80 para dar cinco voltas de kart no kartódromo de Brasília. Enquanto as outras crianças correm isto em 10 minutos ele dá as mesmas cinco voltas em 25 minutos. "Ora, papai, eu quero é dirigir, deixa a piazada torrar o dinheiro dos pais deles". Uma vez escutei um pirralho dizer, "aquele galego (meu filho) morre de medo. Passei duas vezes por ele na mesma volta. Em seguida o menino chorava, o pai dele não quis gastar mais R$80 pruma nova bateria.
Então, vim devagar, um caminhão meu passou várias vezes, om motivo para parar uns dez minutos e retornava à pista e lá estava o caminhão a minha frente, passava -o, novamente. Na quarta ou quinta vez ele deu uma buzinada simpática, "tipo, até a próxima".
E amanhã viajo de novo. Vou a Fortaleza. Avisam-me que terei que rodar mais 100 km além do que o normal. Entre Cruz e Acaraú o lago transbordou e arrebentou a pista. Incrível que por aqui todo mundo acha isto o máximo, é menos seca.
E hoje foi o aniversário do Chico Poeta. Fui à festa e briguei com quatro parentes da minha mulher. A discussão começou porque eles trabalham na roça, na enxada. Disse-lhes que saí daqui há 12 anos e continuam na enxada e avisei: baterei uma foto e a legenda será "Os enxadadores". Ficaram brabos, "melhor que roubar é uma mão inchada pela enxada". Concordei, mas chamei-os de preguiçosos da vida, para progredir tem que ter coragem de mudar e "tudo aqui muda" - completo.
Depois de algumas horas a minha cunhada toma à frente e diz que o sonho dela e fazer seus maravilhosos bolinhos de camarão pra vendermos na praia.
O Chico Poeta formará um grupo musical, quer fazer um forró.
O Thiago venderá castanhas de caju aos turistas.
O Zé Maria da Maria dirigirá para turistas que queiram visitar mais de 19 praias do Camocim.
O Neto trará os grupos do aeroporto. o Fábio comprará o material de construção, o Manú cuidará da energia, água e o Véio da coleta do lixo, reciclagem, etc...sobrou pra minha senhoura, "você tocará a pousada".
Saio da festa, minha senhoura emburrada: "presta atenção, você quis ser rápido, mudar as pessoas? Acha estes 12 anos foi muito tempo? Pois se prepare, em pouco tempo será chamado de louco por aqui se não for devagar com a louça. Mas tô dizendo mesmo".
Não quis discutir, amanhã de casa a Fortaleza serão 320 km. Saio às 6 horas, acho que chegarei antes de escurecer na capital. E para que a pressa? Não vou pegar o trem.