Data original: 05/04/2021
Prezados colegas foristas, boa noite!
Bom, crio este tópico para pedir opiniões para avatares digitais selecionados desta incrível comunidade.
Alguns aqui sabe que sou médico, clínico emergencista, trabalho muito e quase sempre com pacientes graves. Nesta pandemia minha área tem sido muito fustigada há mais de 1 ano, tenho visto colegas adoecendo e muitas vezes nem por covid (e sim por motivos de saúde mental).
Recentemente minha equipe de emergência ficou muito abalada com o falecimento de um técnico de enfermagem (que era uma pessoa maravilhosamente boa, dedicou a vida à cuidar do próximo) por covid19, sendo que ele contraiu a doença há mês não tendo vacinado pois acreditava em fake news de grupos de zap, que diziam que ele viraria cobaia chinesa.
Emergência sempre foi/é um ambiente extremamente estressante. Porém, é um mar que eu conheço como a palma da minha mão, navego ferozmente e com muito prazer. É a única área da atuação clínica em que eu realmente sinto que sigo o meu destino. Sou realizador (meu perfil de gestão), decido as coisas rapidamente e com muita segurança, tenho uma liderança nata que faz muita diferença na condução de cenários críticos/graves. É nesses momentos que eu sinto que atuo naquilo que me foi dado como dom.
Num país como o nosso, a área de medicina de emergência lida diuturnamente com diversas dificuldades. Portanto, a principal característica do emergencista é perceber rapidamente quem são os pacientes graves, intervir energicamente e resolver o problema. Da mesma forma, também devemos reconhecer rapidamente o paciente não grave e tomar conduta para evitar superlotação (e reclamações/etc).
Não é dado ao emergencista a oportunidade de "gastar tempo/energia" com pacientes que não são graves, em tempos de pandemia em que não temos nem respiradores disponíveis. Isso é função do ambulatório (consultório). Porém, isso não significa que você deve tratar mal pacientes ou ser desatencioso. Pelo contrário, devemos ser eficientes para resolver os problemas simples e deixar o paciente satisfeito, para poder dedicar tempo aos pacientes graves.
Tendo toda esta introdução, fica fácil entender que muitos dos ensinamentos estoicistas batem com o dia a dia meu. Não posso perder "tempo com bobeira", portanto não esquento a cabeça com coisas que não consigo controlar. Meu foco está em diagnosticar precisa e eficientemente os casos graves, tratar e intervir de forma a salvar o maior número de vidas.
Cerca de 75-85% da demanda de um pronto socorro de convênio são consultas consideradas "não urgentes". Portanto, são pessoas que não "deveriam" estar ali e acabam atrapalhando a rotina. Grande parte da atuação/energia dispendida passa pelo fato de explicar, inúmeras vezes ao dia, que o paciente não está grave, que ele não vai morrer, que fazer exames desnecessariamente não é a solução para seus problemas e que temos parâmetros precisos que indicam quem é grave e quem não é.
É muito frequente pessoas não grave brigando porque querem tomografia e outros exames que não devem ser pedidos.
Fazendo isso todo santo dia, por mais de 1 ano, sem poder tirar férias (devido á dificuldade de escalas), acaba gerando muito estresse em qualquer pessoa. Me considero extremamente resiliente e sou a prova viva que você consegue trabalhar o máximo possível sem ficar em burnout se você tiver um mindset correto.
Este tópico foi criado porque, minha esposa contraiu covid19 e, sem saber que estava doente, recebeu inesperadamente uma visita de seus pais (eu não sabia que ela estava com sintomas e meus sogros perguntaram se poderiam vir em casa, eu disse que sim). Poucos dias depois, minha sogra começou à ter sintomas gripais.
Isso gerou pânico em minha esposa, que embora seja médica ficou muito abalada com a situação. Disse que, se sua mãe "morresse de covid" ela nunca se perdoaria. A angústia foi tanta que esse virou o assunto de todas nossas conversas durante 3 dias. No começo, fui paciente e disse que não havia com o que se preocupar.
Disse que provavelmente ela não tinha contraído o covid19 pois minha esposa usou máscara no contato e que está fora da mediana de incubação da doença. Ela perguntou o que fazer, eu respondi o que utilizar (minha esposa é pediatra, não trata adultos há anos) e ela perguntou o que poderia ser feito além disso, minha reposta foi: "Nada, só rezar".
Após algumas conversas minha paciência foi se esvaindo, por ser um assunto que lido todo santo dia, e eu comentei: "Não tem o que fazer, esperar. Chegando no dia correto, testa. Se piorar, interna. Se melhorar, não tem porque ficar esquentando a cabeça com isso. Não tem nada que possamos fazer que irá mudar o curso da doença que ela tenha, portanto não tem porque ficar remoendo isso o tempo todo por vários dias!".
Nisso a discussão desandou, me culpou por ter "deixado eles virem" (eu não sabia que ela estava doente) e disse que eu estou trabalhando tanto que virei uma máquina insensível. Confesso que isso me deixou bastante triste, o pouco de tempo que não estou trabalhando dedico exclusivamente à minha família e tudo que eu desejo é que eles fiquem bem e tenham a melhor vida possível.
Já passaram alguns dias, minha sogra testou negativo para covid19 e já está assintomática, sem qualquer sinal de alarme/perigo. Como sempre, após a discussão nós (eu e a patroa) resolvemos nossa briga e ficamos bem, nunca deixamos as coisas sem resolver e nosso relacionamento está ótimo como sempre foi.
Mas a pulga ficou atrás da orelha, até quando a objetividade, a racionalidade, o estoicismo sendo aplicado, pode ser considerado "normal" e à partir de quando nós "viramos robô" ?? Até onde isso é cansaço e até onde isso é ser indiferente??
Pergunta filosófica, textão longo, mas quem se importar em ler e quiser opinar, toda opinião é bem vinda.