Eu sinto o coração batendo mais forte, os músculos enrijecem, a mandíbula trava. O tempo dilatou. O foco é absoluto, todas as outras coisas do mundo desapareceram e só existe essa situação. Uma série de cenários se abrem na minha cabeça, alternativa opções, eu já estou pronto para agir 5 jogadas antes do primeiro movimento para atingir o que eu quero. Eu vou fazer isso acontecer...
Uma descrição comum da raiva. Já ouvi centenas de vezes. As vezes muda uma coisa ou outra: a percepção do corpo, algumas ações, a narrativa. Ainda assim, as histórias tem um núcleo parecido com essa descrição.
-O que sempre varia é o motivador da raiva:
-A conta do restaurante veio errada;
-Uma situação de emergência no trabalho;
-O semáforo fechou;
-O dia de superação no seu esporte habitual;
-Uma mensagem de grupo de Whatsapp;
-Um roubo na casa do vizinho;
-A crianças acordou pela quarta vez na noite.
Um corpo cego que não sabe o que está acontecendo do lado de fora. Uma máquina eficaz. Uma solução simples para resolver a grande maioria dos objetivos.
Fugir do leão, atacar presas, lidar com a fome, e todo o caos em que nós - seres humanos - fomos formados. Não existia a possibilidade de criar uma solução para cada coisa.
O mundo era, e ainda é, apesar de todo o nosso esforço como sociedade organizada, imprevisível demais. Não havia possibilidade de uma solução exclusiva para cada coisa, para o que o corpo não conhece, o que nunca viu.
Nenhuma das situações que causam raiva dos exemplos acima existiam na Savana africana. Ainda assim a solução biológica é eficaz. Um tamanho único para todas as situações.
Não é eficiente.
Eficácia é definido pelos objetivos. É 100% orientada por resultado. Se atende os objetivos é eficaz, é binário. Ou atinge, ou não.
Eficiência é definida pela forma. Precisa atingir os objetivos, mas é determinada pela qualidade da forma, a quantidade de erros, o gasto em relação ao resultado.
Dos oito exemplos ,talvez, para um a raiva seja uma ferramenta eficiente para o problema posto.
Em todos os outros, é opcional.
Uma porta pode ser fechadas de diversas formas. Quando as crianças dormem da forma mais lenta possível, ou elas acordam.
Ou podemos bate-la fazendo barulho.
A porta fecha com muita ou pouca força. A porta não se importa com a raiva, é opcional.
Quando uma pessoa fecha o seu carro no trânsito, ou a situação vai acabar em desastre ou cada um vai seguir seu próprio caminho.
No momento em que você é fechado, você pode soltar o pé do acelerador e deixar a pessoa ir - que é o fim da coisa de qualquer forma - ou, pode ir atrás dela, xingar, fecha-lo em vingança, arriscar outros acidentes, para enfim cada um seguir para onde estava indo. Tudo isso é opcional.
O fim é o mesmo, e se não for torna-se uma daquelas notícias de jornal que não deveriam existir: Briga de trânsito acaba em morte.
São igualmente eficazes, seja lá qual for o fim, mas á diferença de eficiência é clara. O gasto excessivo de energia, tempo, força é óbvio. Pelo menos enquanto estamos sob controle de nós mesmos.
O ego - nossa percepção de nós mesmos - é uma casa. Um lugar de segurança e estabilidade, o lugar que construímos a cada instante de nossas vidas. Ninguém gosta de ouvir que nossa casa é feia, que nosso quintal é sujo. Ninguém gosta que pessoas façam coisas que não gostamos na nossa casa: jogar lixo no chão, quebrar coisas.
Não gostamos de mudanças desautorizadas na nossa casa. Nos sentimos fracos, injustiçados e humilhados. Perdemos a segurança que foi construída. Um dos nossos pilares de segurança está rachando. Sentimos medo. Um caldo de sentimentos negativos que quanto mais ao fogo mais apurado ficam.
Quando perdemos a segurança, o nosso corpo cego, age da forma que aprendeu a agir para todas as situações:
Aumento do batimento cardíaco, da respiração, da tensão muscular, dilatação das pupilas, agitação, mudanças na percepção dos 5 sentidos entre outras coisas.
Voltamos à Savana africana de 50 mil anos atrás. Com o fim da segurança, sentimos e vivemos como se houvesse um leão, ou pior, a possibilidade de um leão a qualquer momento.
A primeira ferramenta que temos. Uma ferramenta extremamente eficaz. Ela nos trouxe até aqui tanto como espécie como indivíduos.
Voltamos à condição de fragilidade de uma criança que só pode agir com choro intenso para conseguir a segurança dos pais. Funciona.
Até quando ela está com sono. É eficaz, mas extremamente ineficiente para o sono.
Sono é o oposto de raiva. É quase impossível dormir com o coração a mil, hiperventilando, com sensações apuradas dos sentidos.
Para dormir precisamos de relaxamento, calma, tranquilidade.
As crianças eventualmente dormem, mas de exaustão. Quando o corpo relaxa por não conseguir mais sustentar a raiva. Então, finalmente, a criança dorme. Na verdade, é mais perto de um desmaio. Ela dorme por que não tem mais componentes fisiológicos para agir com raiva. A raiva é opcional não precisava dela para dormir.
A criança não tem como saber, ela não sabe dormir. Isso não vem programado no DNA. Ela não tem como escolher essa opção, pelo menos ainda não. Ela só tem uma ferramenta.
Quem age com raiva contra a insegurança age de forma racional, assim como o bebê lindando com a confusão da existência de 3 dias de vida. Ela só tem uma ferramenta. A mesma do humano da Savana Africana.
Mas nós queremos proteger nosso ego, nossa casa, inclusive de nós mesmos. Não queremos dizer que a parede é feia por que não sabíamos o que fazer, e criamos histórias fantásticas para justificar aquilo fizemos.
Pessoas com raiva frequentemente justificam suas ações como resposta às “agressões” externas. Dizem que seriam idiotas, bobos, fracos, submissos, inferiores, menores se permitissem que as agressões passassem em branco.
As justificativas para a raiva são apenas histórias que contamos para explicar um remendo que fizemos na nossa casa. Dizemos que foi criativo, que foi necessário, e que foi com reciclagem de material da casa. A grande maioria das vezes foi falta de dinheiro. Poucas vezes é uma criatividade engenhosa e de fato necessária.
Não querem ser controlados por outras pessoas, especialmente em sua própria casa. Afinal, que poder essa outra pessoa tem de interromper o meu caminho, de sujar o meu muro?
E assim justificam a raiva. Justificam agir com raiva.
Sem perceber que a raiva precisa de um objeto. Elas continuam sendo fracas, submissas em relação ao objeto.
Todas as reações fisiológicas que sentimos com raiva são para se preparar contra o leão. A primeira função é gerar afastamento do leão, seja se afastando dele - correndo - ou afastando/destruindo ele - lutando.
As reações fisiológicas são eficazes pois otimizam o estado global do corpo para situações de estresse. Favorecem, correr, lutar, diminuir sangramentos em cortes, diminuir a percepção corpórea e aumento do foco. Para um corpo cego, é uma ótima solução.
Seja como for, a raiva precisa de um objeto. Seja para fugir ou para lutar.
Quem justifica a raiva com os sentimentos de menos valor estão dizendo que preferem morrer na luta à fugir. Que preferem brigar ou destruir o objeto à ter a percepção de que fugiram.
Independentemente do que seja, o objeto da raiva já está controlando você.
A raiva já controlou você. Assim como choro de uma criança com sono. É racional, é uma ferramenta útil, e, provavelmente, te ajudou com muitas coisas. Com baixíssima eficiência e muitas vezes desnecessariamente.
Assim como a criança que dorme exausta, um sono ruim após horas de choro.
A raiva controlou, e controla pessoas assim por falta de outras ferramentas.
Não quer ser submisso ao outro, mas aceita a submissão à raiva.
Uma criança que age com raiva está sendo criança. Elas não teve o tempo, as experiências e as relações necessárias para maturação. Um adulto que age com raiva muito provavelmente está agindo como uma criança. Adultos que vivem com raiva são crianças emocionais, não aprenderam outras formas de lidar com o mundo. Não amadureceram. Não aprenderam que a raiva é opcional.
Faltam ferramentas a quem vive com raiva. Que não conseguem escolher, assim como um bebê não consegue escolher dormir.
Viver com raiva é um problema. Estresse, hipertensão, dores musculares, insônia, dificuldades em relação, pensamento acelerado, relações sONciais frágeis, dificuldades no trabalho, em manter empregos, em pedir ajuda e ser ajudado.
O excesso de força produzido na raiva não desaparece. A raiva precisa de um objeto para receber aquela força.
O excesso produzido pela raiva afeta a própria pessoa e a tudo em volta. É uma bomba que desestrutura tudo em volta, além do coisa atingida. A própria pessoa, família, amigos, trabalho.
Infelizmente, o débito da ineficiência só se torna claro quando falta. Como em tudo na vida, é muito difícil ver o preço quando existe sobra.
Temos muitos amigos, casamento, filhos, trabalho, saúde. O preço da ineficiência da raiva só vai aparecer quando os amigos forem poucos, os casamentos tiverem acabado, os filhos distantes, as dificuldades aparecerem no trabalho, e a possibilidade de infarto aparecer nos 40 anos.
Nesse momento, não é mais opcional. Assim como há opção de parar de comer doces até o diagnóstico de diabete, depois do diagnóstico não há mais opção. Precisa parar de comer doces.
A raiva era opcional, uma vida de raiva leva a um caminho sem opções.