24 A vida e seus pontos imaginários... comentada em 15/04/2025 14:29 Saúde e Esportes Paulo em 20/07/24 22:30 comentada em 15/04/2025 14:29 "The purpose of life is to be defeated by greater and greater things."- Rainer Maria RilkeEu escalo há muitos anos, algo em torno de 20 corridos, talvez 10 se tirar as pausas.Como tudo que se faz por tanto tempo, eu já casei e me separei da escalada várias vezes, por diversos motivos: Lesões, trabalho, filho, desempenho, falta de cabeça para o estresse entre outros.Em 2019 resolvi voltar a praticar escalada como hobby, depois de uma pausa de mais de 5 anos. Eu tinha claro para mim que ela ocuparia um espaço diferente na minha vida, sem a busca por desempenho, sem a busca por crescimento, pelos prêmios, em especial, sem buscar os pontos imaginários da escalada.Definir o que é alto desempenho em um esporte é extremamente complicado. Quando vemos a transmissão das Olimpíadas, tudo parece muito “simples” porque as regras são padronizadas há muitos anos. Os competidores já estão 100% habituados a participar das regras do jogo.Na escalada esportiva não é assim, a escalada é uma cultura, e os próprios participantes da escalada criam regras em torno do esporte, definem a ética, , o que pode ser feito, o que é feito e como é feito.Além disso, definem a dificuldade das coisas, em escalas criadas por consenso. Quanto mais você escala coisas que as pessoas dizem que são difíceis, melhor escalador você é.Quanto mais você sobe coisas que os outros dizem que são difíceis, mais pontos imaginários você ganha.Existem várias culturas de escalada e a orientação padrão é se familiarizar com a cultura local quando você vai a um lugar novo.Eu consegui me manter fora disso e construí uma relação mais saudável com a escalada. Dando menos atenção aos pontos imaginários e vivendo mais a vida da escalada.Tudo seguiu bem até 2023. Em uma ida qualquer, me mostraram um boulder (uma ascensão em rocha de poucos metros com uma entrada e saída definidas) chamado “Jason”.Naquele dia ficou claro como a água que o Jason era algo impossível para mim. Em minha defesa, ele é difícil para a grande maioria dos escaladores, e provavelmente impossível para uma pessoa que não tem treino em escalada.www.instagram.com/reel/CuZhrH7I7W9/?igsh=MWtrZ3N2N29zYnZvNgMas, talvez não fosse impossível para o Paulo do futuro, e isso me levou a treinar novamente.Foram 4 meses reorganizando a minha vida para que eu pudesse treinar buscando desempenho.Quem já ouviu meus chats sobre alta performance tem uma noção mais ou menos do que eu estou falando. Eu já tinha a base de treino pelos anos escalando, mas a minha vida não estava orientada para performance. Não é algo que você consiga enfiar na sua vida na marra.Em outubro de 2023 eu voltei a treinar com a ajuda do Deco (personal trainer), . Eu chamo de “treino de anime”. É uma forma que eu achei de pensar sobre a certeza que eu tenho de que o Deco quer me matar. Talvez ele não queria me matar, acho que ele só não se importa se eu morrer treinando… mas divago…Em Fevereiro já haviam sinais claros de progresso, minha escalada, força e resistência cresceram absurdamente.Em Fevereiro eu estava escalando mais, melhor e coisas mais difíceis. Coletei vários pontos imaginários. Não tem jeito “qualquer métrica vai te ferrar”.Os pontos imaginários sempre acabam entrando no meio da coisa.www.instagram.com/p/C3yWVfKPj5n/Não consegui passar do Crux (a cruz, a parte mais difícil de um boulder ou via), mas o progresso era evidente.Até que em Abril, em um treino qualquer, eu tive uma lesão que me tirou toda a força da mão direita, em especial do anelar e do mindinho. A lesão doía da ponta do dedo ao cotovelo.O momento da lesão:https:///Lesão - YouTubeFoi uma merda. 7 meses de treino, resultados e pontos imaginários jogados fora em 8 segundos.Confesso: foi difícil perder os pontos imaginários. Eu estava em uma progressão muito boa, apesar de não ter progredido muito no Jason, estava na minha melhor forma física. Foi ruim perder isso. Foi muito ruim perder tudo isso de uma vez só…Em 8 segundos.Ao mesmo tempo, o meu desprendimento dos pontos imaginários me possibilitou continuar treinando. Foram meses muito ruins, todo o dia batalhando um centímetro. Em vários dias a situação piorava, em outros melhorava.O pior mês foi Maio. Foi um mês “perdido” em resultados, mas fundamental para a melhora da lesão. Só de eu não ter desistido já considero uma vitória. Os meses seguiram, os treinos seguiram em uma luta contínua contra a dor. Sempre no limite e no risco do quanto daria para forçar sem piorar a lesão.Isso no braço direito.O acordo com o Deco era “se eu não posso escalar, eu posso ficar forte”, e, assim, ele continuou com suas tentativas de assassinato semanais.Um dia de cada vez, um treino de cada vez, um movimento de cada vez, um boulder de cada vez, um mês de cada vez.Abril…Maio…Junho…Julho!Em uma semana qualquer de julho a batalha contra a dor acabou. Meu braço direito estava bastante fraco em relação ao esquerdo, mas sem dor. Lutar por força é muito mais fácil do que lutar contra a dor. Muito mais fácil.O treino de força pagou, o treino antes da lesão também. Ainda não está 100%, mas nunca está.Está melhor e isso que importa.Hoje, eu aproveitei o alinhamento dos astros e resolvi me dar uma nova chance contra o Jason. Algo que era impossível um ano atrás.Algo que parecia impossível 2 meses atrás.https:///20 de julho de 2024 - YouTubeNão foi...A escalada é uma cultura.Pelas regras da cultura, eu não ganhei os pontos imaginários.Meu pé esquerdo raspou no crash pad (o colchão que amortece a queda) e isso invalida a ascensão.Não aparece no vídeo, não tinha ninguém lá para ver. Da forma que ele raspou não fez a menor diferença.A escalada é uma cultura, e dentro da cultura essa é a regra do jogo.Eu posso jogar outro jogo, com outras regras, mas não é o jogo que eu escolhi jogar.Quando eu me comprometi com o treino, eu aceitei o jogo. É um jogo de desempenho, é um jogo que busca uma idealização de perfeição.Para jogar esse jogo, eu tenho que aceitar que a ascensão não valeu e tentar de novo. Eu tentei.Não foi...Eu agradeço muito por todas as mudanças que meu “eu do passado” fez na última década. Mudanças que permitiram que eu fique feliz com o que eu consegui fazer hoje, e que possa dividir essa felicidade com as pessoas que fizeram parte desse processo (inclusive vocês da bastter.com).No passado, é bem provável que eu sentisse vergonha do que aconteceu hoje, e não compartilharia isso com ninguém.Eu já comentei em vários posts como eu era um babaca. Eu era um babaca especialmente comigo. No passado eu teria lidado muito mal com essa situação. É bastante possível que eu deixasse de escalar de novo, já foi assim uma vez. Hoje foi uma grande conquista pra mim. Foi o resultado de um processo bem longo e doloroso, que valeu a pena.Um processo que envolve a escalada, mas também que envolve uma mudança que começou muito antes, por volta de 11 anos.Eu me dei a chance de me transformar em alguém que faz algo que era impossível para o meu “eu” de um ano atrás. Eu me dei a chance de me tornar uma pessoa melhor do que o meu eu de 2013A única coisa que eu posso pedir de mim é que eu dê a mesma chance para o meu eu de amanhã, do próximo mês, do próximo ano.O dia foi ótimo. Não ganhar os pontos imaginários não tira nada do que eu ganhei no caminho.Eu vou voltar lá, e buscar esses pontos, eles não valem absolutamente nada, mas eu quero. Desde que essa busca não interfira mais na minha paz, eu quero buscar eles pelo tempo que for necessário. Por hora, eu fico feliz de ter chegado tão perto quanto é humanamente possível.