Achei esse texto que escrevi em um comentário antigo. Nesse momento de encontro com as pessoas queridas depois de tempos difíceis torço que possa ajudar a favorecer o contato com quem amamos.
Post original:
Enquete: Você se perdoou completamente? - Assuntos Gerais - Bastter.com Feliz festa, pessoas queridas
---------------------------------------------------------------------
Se Perdoar é um treco estranho, mais pela forma que a gente se relaciona com isso do que com a coisa em si.
O que é perdoar depende de como cada um define, e eu não tenho como saber sem perguntar. Mas o objetivo de perdoar, pela minha experiência, é mais ou menos igual para todo mundo. Algo assim:
- Acabar a dor;
- Tirar o peso;
- Acabar a culpa;
99% das pessoas que eu falo dizem algo nesse sentido: Tirar aquilo que incomoda. Então, sendo bem claro:
Isso não existe
Especialmente nessas situações acontece o paradoxo do elefante rosa. Pedir um auto perdão nesse sentido, é a mesma coisa que dizer: Não pense em um elefante rosa.
Quando alguém fala "para não pensar no elefante rosa, vou pensar no boi azul" é uma mudança possível, e pode dar certo. O problema dela é que sempre existe a possibilidade do contrário acontecer, do boi azul passar a causar as mesmas coisas que o elefante rosa causava.
Quanto maior o elefante rosa, maior a chance do tiro sair pela culatra.
A alegoria que eu uso é a da batida de carro. Se você bate o carro numa pilastra, não tem como desbater o carro. É uma situação definitiva. Não adianta não olhar, não adianta passar massa, não adianta fingir que não aconteceu. Mesmo depois de arrumar o carro, fica aquela coisa do carro batido, e quando você for vender será questionado sobre isso.
O carro batido não desbate, não há nada que possa fazer para restaurar o mundo de volta para o momento antes do carro bater.
Se você tentar esconder do pai/mãe/esposa/marido/dona do carro as coisas só pioram. Quanto mais evita o contato com a coisa pior fica.
Assumindo que esses eventos que exigem o auto perdão foram eventos altamente traumáticos, eu não conheço um caminho que atenda esse pedido de desfazer o mal que foi feito. Não tem como desbater o carro.
Isso não significa que não existam saídas, só não é a saída mágica. O que eu recomendo é procurar um psicólogo bom, muito bom mesmo. Pq esses caminhos são cheios de altos e baixos. Então tem que ser alguém que saiba fazer o que precisa fazer.
A saída envolve:
1.Auto aceitação:
Aceitar que você fez algo ruim, que você não é perfeito, que também foi capaz de produzir coisas ruins no mundo.
De certa forma eu acho importante todo mundo entender isso. Já era uma verdade antes do evento, o trauma só foi grande o suficiente para tornar explícito.
Envolve aceitar que não é o cara, o fodão, o super certo. Que o mundo não é binário, preto ou branco. Que as suas ações não são perfeitas, que você não tem razão em tudo.
Enfim, aceitar a humanidade.
As pessoas que eu conheci que mais tinham dificuldade com o auto perdão são as que foram radicalizadas por algum grupo. Não foi um evento traumático, foram anos e anos de vida fazendo diversas coisas e de repente o castelo de cartas ruiu.
Junto com a aceitação vem também a aceitação da parte boa que existe em você. Pq o mundo não é preto ou branco. Um evento singular não define quem você é. De que você pode fazer e viver as coisas boas e das coisas boas que você produz pq você também faz essas coisas.
Você não precisa tirar o sofrimento para ser feliz, dá para ser feliz apesar do sofrimento. Felicidade e sofrimento são condições da vida. Não tem que se agarrar em um ou outro para viver.
Aceitação sONcial:
Existe muita gente que passa a vida toda se ocupando de morrer. Como diz o bastter: Tem gente que passa metade da vida atrapalhando a outra metade. Já não seria bom pedir ajuda deles para situações cotidianas, para assuntos complicados é melhor manter distância mesmo.
Não é pq você passou a aceitar que a humanidade é confusa que as pessoas do mundo vão fazer. A maioria das pessoas não consegue nem perceber que erra, muito menos reconhecer as implicações dos próprios erros, quem dirá te acolher nos seus.
É extremamente necessário achar as pessoas que conseguem te ouvir, que te ajudem a aprender a falar sobre o que você fez, o que passou, as implicações das suas ações, os medos, as ansiedades, os arrependimentos. Pessoas que acolham a pessoa que você é, com todos os graus de cinza.
Procure pessoas que saibam conversar e escutar abertamente sobre coisas difíceis. Pode ser: psicólogo, líder religioso, líder comunitário, mentor, amigo, pai, mãe, tio. Mas ser alguma dessas coisas não é aaaaaaaagarantia de nada, só são pessoas que geralmente cumprem esse papel. Mas se o pai é agressivo, evite. Se o amigo ou psicólogo ficar mandando você fazer ou desfazer coisas, evite. Se o psicólogo ouve a sessão inteira sem falar nada, evite.
Não é que a conversa seja fácil, ela é bem difícil. Mas é uma conversa necessária e existem pessoas no mundo que são boas nisso. Busque essas pessoas. Todo mundo precisa de pessoas, precisam ainda mais no pior que são.
A coisa que me deixa mais triste no consultório são pessoas que passaram a vida inteira sozinhas carregando segredos e as vulnerabilidades. São pessoas casadas, com filhos, família e amigos, trabalho. Passaram a vida inteira sem saber que eram amadas apesar de seus erros. Sozinhas e sem perceberem que eram amadas.
Às vezes, essas pessoas estavam em situações sONciais bem ruins e ficarem sozinhas era uma solução possível porque causa menos dano que se expor. Nesse caso, o trabalho é ajudar a achar pessoas ou grupos que sejam bons para ela.
Mas a grande maioria das pessoas já estava em grupos que estavam dispostos a aceitá-las nas dificuldades.
Sozinho é muito mais difícil, em alguns casos é impossível de fazer sozinho.
Perseguir os seus propósitos de vida apesar das dificuldades
A ideia de desbater o carro esconde a realidade e leva a uma ilusão que diz: Se isso for desfeito, as coisas voltarão a ser como eram, e eu poderei ser feliz. É um pensamento mágico ou idealizado sobre a realidade que traz uma sensação de que se o carro desbater eu poderia voltar ao “curso normal” da minha vida.
O carro não desbate, nem precisa definir a sua felicidade em um carro batido.
Uma situação análoga é a da pandemia. Pessoas que estão esperando uma solução mágica para a pandemia são consideradas em risco. Ainda que todos sejam vacinados amanhã, dificilmente a sociedade se reestruturará amanhã e é bem certo que as coisas não serão como antes.
É uma situação que exige a busca de novos caminhos para satisfazer os nossos desejos, propósitos, vontades, necessidades etc.
Quem espera passivamente que o mundo volte a sua estrutura anterior, põe-se em risco pq abre mão daquilo que é mais importante para si, e fica vulnerável a tantos outros tipos de dificuldades. Quem finge que não aconteceu nada também se expõe a dezenas de riscos e dificuldades.
Mudanças fazem parte da vida, isso é uma das poucas coisas que eu consigo afirmar categoricamente. Mudanças acontecem o tempo todo, a maioria das vezes são muito lentas e vamos nos adequando sem reparar, gerando uma ilusão de controle e estabilidade. Mas houveram infinitas mudanças na sua vida o tempo inteiro, elas só estavam na sua zona de conforto.
Nesses casos elas são traumáticas e exigem uma mudança maior num menor espaço de tempo exigindo readequação da vida como um todo. Não vai dar para atender todas as necessidades ao mesmo tempo, o sofrimento vai ficar lá um tempo, mas é importante perseguir o que está dentro do seu controle naquele momento, nem que seja para as coisas ficarem menos piores.
Menos pior é muito melhor.
Uma analogia besta é a da obra, exigir que a casa toda fique pronta do dia para noite de uma vez só e perfeita para todo o sempre é impossível.
Entretanto, isso não impede que você faça força para construir aquilo que pode hoje. Aos poucos a confusão do canteiro de obras vai se tornando uma casa de verdade e as experiências que você vive vão ocupando o que antes era o estresse da construção.
Eventualmente, acontece alguma coisa errada - novas necessidades, infiltração, rachadura, piso quebrado etc - que te leva de volta para aquele lugar ruim da obra, do desgaste, do arrependimento de ter ter feito decisão X ou Y na construção, mas se a vivência na casa - aceitando as limitações dela, com pessoas que também aceitam a limitação e dentro dos seus propósitos de vida - foram grandes, fica mais fácil de lidar com aquilo que foi perdido, e com aquilo que ainda vai se perder.
Abraços